A busca da pureza racial é um equívoco moral e científico. Em outras palavras: promover a reprodução contínua, geração após geração, entre indivíduos de um mesmo grupo não apenas tende a travar os mecanismos da evolução, como pode, ao longo do tempo, se tornar um problema de saúde pública. Casamentos entre ascendentes e descendentes (pais e filhos, avós e netos) e entre colaterais (irmãos) não só atentam contra a cultura coletiva como põem em risco a prole, sujeita à manifestação dos genes aparentados recessivos, nos quais se escondem deformações e problemas psíquicos. Esse conhecimento hoje é notório, mas não era assim na casa real de Habsburgo, uma das mais influentes da Europa no século XVII. A fim de manter a coesão do império e garantir que o cetro de poder jamais se distanciasse da família, arranjavam-se casamentos sucessivos entre primos — e eventualmente entre tios e sobrinhas — para perpetuar a linhagem, inclusive entre os monarcas que desembarcaram no Brasil. Recentes estudos científicos, contudo, começam a entregar um novo e fascinante olhar sobre os efeitos da consanguinidade e dos intercasamentos nas realezas. O mais recente deles, realizado pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), constatou que, quanto maior for a concentração de casamentos entre parentes, mais problemas a dinastia terá, resultado de evidentes dificuldades comportamentais de seus pares. “A consanguinidade foi um desastre para as famílias governantes e suas nações”, disse o pesquisador Sebastian Ottinger, um dos autores do estudo.
Habsburgo remonta ao início do segundo milênio da era cristã, no apogeu do sistema feudal. Originalmente era o nome do castelo da família, mas se tornou símbolo de poder absoluto quando Frederico foi coroado rei do Sacro Império Romano-Germânico, em 1452. Nos anos que se seguiriam, a dinastia governaria, além de Áustria, Alemanha e Países Baixos, a Espanha, onde os intercasamentos ultrapassaram os limites. Filipe IV, que já era fruto de união entre tio e sobrinha, também se casou com uma sobrinha, que deu à luz Carlos II, em 1661.
Três marcantes características físicas da família — o nariz baixo, o lábio inferior grosso e o queixo proeminente — ganharam proporções ciclópicas no rosto de Carlos, mas isso era o menor de seus problemas. Ele começou a falar tardiamente, aos 4 anos, e só conseguiu caminhar aos 8, devido ao raquitismo. Além de não poder mastigar direito por causa do chamado prognatismo mandibular, ele sofria de epilepsia e era infértil. Com sua morte, em 1700, aos 38 anos, acabou o reinado dos Habsburgo na Espanha. E, neste ponto, a trama fica especialmente interessante para os brasileiros.
No ramo austríaco da casa de Habsburgo não havia mais varões para assumir o trono. Então, a herdeira Maria Teresa se casou com Francisco, da casa de Lorena, introduzindo mais sangue francês na família e fundando assim uma nova dinastia: a Habsburgo-Lorena. A bisneta de Teresa, batizada de Leopoldina, se casaria, em 1817, com o futuro imperador Pedro I, trazendo sua linhagem para terras tupiniquins — o amarelo da bandeira brasileira advém da casa austríaca, assim como o losango, na heráldica, simboliza o feminino.
A arquiduquesa não tinha o queixo protuberante que marcou seus ancestrais, ainda que o lábio inferior fosse mais grosso que o superior. Ela não apresentava sinais deletérios de casamento consanguíneo: amante da música e das ciências, falava quatro línguas e aprendeu português em semanas. Sua contribuição para a independência do Brasil é motivo de discussão, mas definitivamente era amada pelos súditos. A morte prematura, aos 29 anos, chegou a ser associada à depressão provocada por problemas congênitos, tese hoje desacreditada.
O queixo avantajado pode ter pulado uma geração, mas voltou a se fazer presente nas feições do imperador Pedro II — manifestação dos genes recessivos vindos não só da mãe, mas também do pai. Os Habsburgo eram tão hegemônicos na Europa que é possível rastrear casamentos entre eles na genealogia de Pedro I, tanto do lado do pai, o português João VI, quanto da mãe, a espanhola Carlota Joaquina. Vale pontuar que o lábio inferior roliço e o prognatismo eram sinais de nobreza. Mesmo assim, Pedro II adotou a barba que o acompanharia.
O casamento entre primos é tabu em boa parte dos países ocidentais, mas o código civil brasileiro não proíbe a união, pois são considerados parentes de quarto grau. O novo código, promulgado em 2002, deixou uma brecha jurídica para o casamento entre tios e sobrinhas. Do ponto de vista científico, há meios de mapear doenças hereditárias antes da concepção. As manifestações indesejáveis dos genes recessivos, porém, seguem o curso da probabilidade. Os membros da dinastia Habsburgo não sabiam disso. Quando decidiram jogar com a sorte, acabaram com a sucessão espanhola. Talvez devessem ter optado pela mistura com pessoas distantes e de fora do círculo restrito, como manda o bom senso.
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739