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Da arte de escrever bem

Site reúne antologia de textos do jornalista Geraldo Mayrink (1942-2009), que trabalhou em VEJA

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 mar 2021, 18h57 - Publicado em 12 mar 2021, 18h52

Ninguém escrevia primeiras linhas tão boas quanto o Geraldo Mayrink. Escrevia e pensava como poucos. Na voz dele, de textos extraídos de VEJA, onde trabalhou no fim dos anos 1960 e início dos 1970 e, depois, numa segunda temporada, nos anos 1990:

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“A cova reservada a Jean-Paul Sartre parecia aberta desde o começo dos anos 1960, quando se trocou o vocabulário da filosofia pelo das ciências humanas, mas ela talvez fique vazia para sempre. ” (1980, em obituário do filósofo francês)

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“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol.” (1972, sobre Garrincha)

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“O Poderoso Chefão é um documento em três vias: violência, finanças e uma certa saudade dos bons tempos. Duas delas são velhas conhecidas da vida cinematográfica americana; a outra surgiu das necessidades do momento.” (1972, sobre o filme de Coppola).

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“Os velhos olhos azuis se foram, se é que as lendas têm cor ou vão embora algum dia. Francis Albert Sinatra nasceu condenado, cresceu como bandido-herói e morreu em busca do céu.” (1998, sobre A Voz).

A recuperação do trabalho de Geraldo Mayrink é resultado de uma bonita relação de amor, a de um filho, o publicitário e editor Gustavo, e o pai. Gustavo reuniu cerca de 900 textos e começou a publicá-los, cuidadosa e diligentemente, no site geraldomayrink.com.br. De Gustavo, na página eletrônica: “Geraldo Mayrink, meu pai, era um notório desastrado funcional. Colocava fita VHS de comprido no Panasonic 4 cabeças, pedia chopp no McDonald´s e perguntava se site ‘tipo internet’ pegava lá em casa. – Pega pai! Coloca um Bombril em cima do monitor! Quis o destino, incansável gozador, que ele guardasse em pastas e caixas a maioria dos textos que escreveu ao longo da carreira, o que só pode ter sido uma vingança silenciosa e profética contra tudo o que se anunciava: as mudanças tecnológicas, o estilo ‘neocom’ e a consequente derrocada do modelo clássico de jornalismo. ‘It’s the end of the (Microsoft) Word as we know it’, já alertava um ressabiado Michael Stipe”. Geraldo Mayrink morreu cedo demais, em 2009, aos 67 anos. Gustavo tinha 34.

Mas obra ficou, e Gustavo trata agora de organizá-la. Lê-la é um prazer que gruda na memória. Para quem não o conheceu, ajuda a imaginar a inteligência e a fina ironia de um tremendo jornalista, capaz de reunir o bom português e o faro para descobertas exclusivas. Para quem o conheceu, ler o que relata Gustavo é como dar um passeio, domingo no parque. Gustavo: “Como ele produzia incansavelmente, era comum que na infância eu fosse dormir ao som da máquina de escrever ou acordasse sem que ele tivesse voltado de um fechamento da noite anterior. Também me lembro da aventura que era, ainda criança, visitar as redações e percorrer aquela Disneylândia de Gutenberg e seus maravilhosos brinquedos tipográficos. Nessas ocasiões, sempre que precisava de um respiro para finalizar alguma matéria, meu pai me instruía a percorrer as mesas da redação arrecadando fundos para investir em guloseimas. As operações me rendiam balas, chicletes, chocolates e, certa vez, um cheque de um milhão de dólares ‘assinado’ pelo Delfim Netto com o qual tentei, despistadamente, comprar uma bicicleta. Minha pedalada fiscal fracassou, mas aprendi um pouco sobre o senso de humor entre os jornalistas, como no caso da repórter que não sabia empregar as vírgulas e recebeu de meu pai um conselho: ‘Faça o seguinte, minha querida: nesta página você escreve o texto. Nesta outra você põe as vírgulas. Deixa que eu distribuo”.

E lá ia o Geraldo começar um texto, compenetrado, atento, a caminho de aprontar alguma. O lead, no jargão em inglês, ou lide, em português, ensinam as escolas de jornalismo e uma montanha de livros, é o começo de todo o texto, que deve responder a seis perguntas: o quê, quem, quando, onde, como e por que. Geraldo, como fazia com quem não sabia encaixar vírgulas, embaralhava tudo – o onde vinha antes do quando, o por que entre o quê e o quem, e ninguém percebia. O lide era bobagem – vinha muita coisa antes dele, uma vida inteira, talvez. Faz lembrar uma das máximas do tricolor Nelson Rodrigues em torno do futebol: “O Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada”.

No comecinho dos anos 2000, final dos 1900, tive a honra de trabalhar com Geraldo Mayrink na revista Época. Na edição comemorativa dos 500 anos da chegada de Pedro Álvarez Cabral, como sabíamos do apreço de Geraldo por abrir os textos, ele foi convidado a editar uma reportagem com os parágrafos iniciais mais honrosos da Flor do Lácio, que tinham sido escolhidos inicialmente por José Mindlin e que seriam ilustrados por Cassio Loredano. Dois trechos, aqui escolhidos ao léu:

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“O doutor Lopes Mattoso não foi precisamente o que se pode chamar um homem feliz.” (A Carne, de Júlio Ribeiro).

“Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida toda é um doer”. (Dora, Doralina, de Raquel de Queiróz).

São começos de honrar Geraldo Mayrink. E como tudo o que começa termina, e Geraldo era craque também em pousar os textos, ele mesmo sugeriu que escolhêssemos os epílogos. Um deles de João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: “Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! E o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.”. Nonada, quer saber como Geraldo Mayrink finalizou o texto em memória a Sartre, de 1980, publicado em VEJA?

Assim: “Não somos homens completos”, concluiu no fim da vida, cercado pelo pequeno grupo de auxiliares, gente com idade média de 30 anos que gravava e anotava seus pensamentos até uma hora da manhã, quando invariavelmente se deitava para dormir. “Somos seres que se debatem para chegar a relações humanas e a uma definição de homem. Estamos em plena batalha agora. E ela sem dúvida vai durar muitos anos.”

Geraldo Mayrink
Geraldo Mayrink (./Divulgação)
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