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Confira na íntegra a entrevista de Camille Paglia

Por Da Redação
11 out 2014, 18h31

A americana Camille Paglia não se esquiva de controvérsias. Professora de Humanidades e Estudos Midiáticos da University of the Arts da Filadélfia, dispara críticas ferinas a uma parcela do movimento feminista, a artistas pop como Miley Cyrus e, principalmente, às artes plásticas contemporâneas, que já não atuam mais na vanguarda da mudança cultural, segundo ela. Como se tivesse dado um passeio pela atual Bienal Internacional de Artes de São Paulo, um resumo perfeito de tudo o que ataca em seu novo livro, Imagens Cintilantes – Uma Viagem Através da Arte desde o Egito a ‘Star Wars’ (tradução de Roberto Leal Ferreira, Apicuri, 224 páginas, 49 reais), recém-lançado no Brasil, ela bate pesado em quem faz arte para chocar sem trabalhar conceitos em profundidade e sem correr risco algum – sem de fato transcender ou transgredir.

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Na introdução do seu livro, a senhora diz que é ultrapassada a ideia de que a arte capaz de chocar o público seja importante por definição. Ainda há artistas cujo objetivo seja simplesmente provocar o choque? Esse problema pode não afetar países como Brasil e Itália, que sempre respeitaram a beleza como princípio da arte, moda, decoração de interiores e da vida, mas tem sido um mal terrível para as artes dos Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. Houve um número menor de incidentes do tipo nos EUA nos últimos anos, mas isso pode ser resultado, na verdade, de um recuo generalizado do cenário artístico. Fazer arte para chocar no mundo de hoje é uma forma de moralismo puritano, que usa uma estratégia calculada e pré-fabricada para intimidar ou punir o público. A arte se tornou arrogante e elitista, além de literal.

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Arte chocante de qualidade – como Saturno Devorando um Filho (criado entre 1819 e 1823), de Francisco Goya, Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Pablo Picasso, ou A Noite (1919), de Max Beckmann – é criada em um momento em que instituições antiquadas e corruptas precisam ser atacadas e expostas. Esses artistas estavam se arriscando à condenação, rejeição, prisão e coisas piores que isso. Havia um custo pessoal e sério nesse gesto desafiador.

Mas com a arte chocante feita de 1980 em diante é diferente. Um artista que insulta valores tradicionais – como o fotógrafo americano Andres Serrano, que mergulhou um crucifixo de plástico em uma jarra com a sua urina, em Piss Christ (1987) – é recompensado com a adoração de museus, universidades, agências governamentais para o gerenciamento das artes e jornais de prestígio.

Eu detesto esse comportamento tolo e contraproducente de artistas contemporâneos que mimetizam, sem nenhum custo pessoal, as realizações da vanguarda do passado. É exatamente por isso que muitos americanos comuns desprezam a arte. Apesar de ser ateia, eu respeito as religiões e condeno fortemente as vozes no mundo da arte e das universidades (assim como no movimento gay) que adotam a pose de “arrojadas” por insultar a religião – que é uma força mais importante do que a dessas pessoas e que terá uma vida mais longa do que elas.

Na minha opinião, a última arte chocante de vanguarda foi feita na década de 1970 por Robert Mapplethorpe, com suas fotografias do submundo sadomasoquista gay de Nova York. Católico de nascimento, Mapplethorpe produziu um retrato escultural da tortura sexual ritualística com luminosidade sacra, como estátuas e pinturas do martírio de santos.

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A senhora diz que a morte de Jackson Pollock, em 1956, e a consequente administração de seu espólio por sua mulher deram origem ao mercado de arte especulativo como o conhecemos hoje. Quão prejudicial para a arte contemporânea é a venda de obras em grandes leilões? Eles são uma maneira de atestar o valor das peças ou um sinal de que elas se transformaram em meros produtos? A arte só ganha o noticiário hoje quando uma obra é roubada de um museu ou uma pintura de um artista famoso é vendida por um preço absurdamente alto em um leilão. A arte se transformou em investimento para os super ricos, em nada diferente de diamantes ou imóveis. Essa ostentação e excesso distorceram a percepção popular da arte, que toma a aparência de um jogo narcisista e ganancioso dos poderosos para a maior parte das pessoas.

As quantias extravagantes de dinheiro que são injetadas no mercado internacional de arte também envenenam a atmosfera para jovens aspirantes a artistas. Galerias urbanas chiques nos EUA estão, por vezes, oferecendo contratos de exclusividade a artistas que ainda estudam em escolas de arte e não dominam seu ofício. A possibilidade de ficar rico rapidamente interrompe, de maneira preocupante, o processo de maturação de um artista, que deve se desenvolver em tranquilidade, longe dos holofotes.

Esta corrupção comercial também aconteceu com o rock ‘n’ roll, quando ele surgiu como o gênero musical principal da minha geração, nos anos 1960. O que antes era um meio barulhento e divertido de entretenimento para adolescentes, de repente se tornou uma gigantesca máquina de fazer dinheiro, e as corporações musicais de Nova York e Los Angeles correram para oferecer contratos de gravação para cada jovem músico promissor. As bandas de rock foram enviadas em longas e fatigantes turnês e forçadas a produzir álbuns rapidamente, antes que as músicas fossem totalmente aperfeiçoadas. Afastadas de amigos e namorados e viajando constantemente, muitas bandas talentosas foram destruídas pelo frenesi de turnês e do sexo fácil e da falsa adulação proveniente de shows chamativos em estádios.

A senhora tentou alcançar um público amplo com o livro Imagens Cintilantes, mirando leitores que geralmente não acompanham o mundo da arte. Foi também uma tentativa de fazer com que as pessoas, e principalmente os artistas, percebessem que a arte contemporânea está muito derivativa e repetitiva? Com o livro, que demorou cinco anos para ficar pronto, tento atingir o público geral, mais do que os artistas. A maioria dos livros de arte são pretensiosamente grandes e pesados, difíceis de segurar. Eu queria produzir um livro fino e conciso, que seria prazeroso de ler. Meu objetivo era que o leitor visse 3.000 anos de arte ocidental se desenrolando diante dos olhos, rapidamente e de maneira mágica. Eu mantive os meus capítulos tão curtos quanto podia, porque queria que o leitor ficasse como que intoxicado com a estimulação visual e perdido em um mundo de beleza. Faço também um apelo fervoroso para os pais para que eles mostrem a seus filhos a história da arte. É necessário um manual conveniente, acessível, que explique a arte de forma simples, lúcida. Eu tentei escrever esse livro.

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Em relação aos artistas contemporâneos, eu respeito seu compromisso com a prática nobre. Há uma dose de boa arte sendo feita no mundo. No entanto, muitos dos artistas contemporâneos simplesmente repetem fórmulas – de tema, estilo e abordagem – que já se esgotaram. Gerhard Richter é provavelmente o artista mais importante e prolífico da atualidade, e eu admiro seu trabalho, mas não acredito que ele tenha atingido nem de longe o status de Mark Rothko, um grande artista de quem o estilo de Richter descende, em parte. Rothko teve uma tremenda visão espiritual que se aproximou do misticismo. Richter é muito cerebral, metódico e imparcial. Ele não tem a paixão e o êxtase de Rothko.

Infelizmente, as artes plásticas contemporâneas já não estão na vanguarda da mudança cultural. Os jovens concederam sua lealdade à tecnologia e ao design industrial, simbolizado por seus iPhones em constante evolução, com seus múltiplos aplicativos e funções. Por causa de programas de computador, como o Photoshop, gêneros tradicionais como a pintura estão em declínio e provavelmente nunca vão se recuperar. Os jovens estão derramando sua energia criativa e engenhosidade na internet e no design de videogames ou em vídeos brilhantemente inteligentes do YouTube, que se tornam virais. A comunidade artística falhou em reconhecer ameaças à sua existência. Por isso escrevi esse livro, para tentar demonstrar a complexidade e a dimensão espiritual da arte, que não pode ser totalmente emulada por iPhone.

O último capítulo de Imagens Cintilantes trata de Star Wars: Episódio III – A Vingança dos Sith (2005), dirigido por George Lucas. Por que diz que ele é o maior artista vivo? Durante a minha pesquisa para esse livro, procurei um exemplo forte de arte contemporânea, mas, para meu desânimo, não encontrei nenhum que fosse original e distinto o suficiente para suportar uma comparação com os grandes trabalhos citados no livro. Enquanto escrevia, ligava a TV à noite e às vezes um dos seis filmes da saga Star Wars estava sendo exibido. Eu já havia visto os três primeiros (1977-1983), mas ignorado os três seguintes (1999-2005), porque pensava na série como uma forma de entretenimento inofensiva para crianças. Por isso, fiquei completamente atordoada com os avanços sofisticados de George Lucas em animação digital, assim como em sua capacidade de articular profundamente as emoções. O clímax do último filme, A Vingança dos Sith, ocorre em um ardente, apocalíptico planeta vulcânico e é tão tempestuosamente apaixonado como uma ópera de Puccini. Há um duelo energético de sabre de luz em um rio vermelho de lava entre Anakin Skywalker e Obi-Wan Kenobi, que termina na criação macabra de Darth Vader, o mal, imperialista robótico que é uma das principais contribuições de Lucas para a mitologia do mundo. Na minha opinião, o final longo e arrebatador de A Vingança dos Sith supera praticamente tudo o que foi produzido nas artes plásticas nos últimos 30 anos.

A Bienal de Arte de São Paulo está em cartaz atualmente. Algumas peças da mostra foram criticadas por sua obviedade, particularmente aquelas que querem deixar claras as suas posições políticas. O que acha da influência da política na arte? Os pós-modernistas afirmam que toda arte é política, isto é, que toda arte tem uma motivação ideológica. Acho que este é um exagero ridículo, já que muitas obras importantes foram inspiradas por visões espirituais, como O Êxtase de Santa Teresa (1647-1652), de Bernini. Há certamente muitas pinturas políticas importantes, como A Morte de Marat (1793), de Jacques-Louis David. Ele mostra um incidente real, um dos líderes da Revolução Francesa morto em sua banheira depois de ser esfaqueado por uma mulher.

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David conseguiu se adaptar com muita astúcia às mudanças políticas atordoantes na França, porque apenas alguns anos mais tarde ele estava produzindo magníficas pinturas de propaganda de Napoleão, que seria coroado imperador. Eu adoro os desenhos políticos, ferozmente satíricos, feitos por George Grosz dos generais incompetentes e financiadores gananciosos que levaram a Alemanha à catástrofe da Primeira Guerra Mundial. Grosz arriscou a sua vida ao atacar a situação política. Ele teve a sorte de escapar da Alemanha apenas algumas semanas antes de Hitler assumir o poder.

No entanto, é difícil produzir arte política bem sucedida. Deve haver alguma profunda transformação do material por meio da imaginação e do intelecto. Caso contrário, os resultados são muito simplórios e agressivos, pregando um sermão enfadonho para o visitante. Arte política de baixa qualidade é meramente kitsch – como cartazes nazistas do super-homem ariano ou pinturas soviéticas de camponeses felizes cumprimentando tanques do exército stalinista com flores. Se o espectador não sente uma explosão de iluminação, uma obra de arte política falhou.

O Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, sediou recentemente exposições sobre o músico David Bowie e o cineasta Stanley Kubrick, e sobre um programa de televisão, e atraiu muitos visitantes. A senhora acha que esse tipo de exposição ajuda aqueles que não costumam acompanhar o mundo da arte a perder o “medo” de entrar em um museu? A exposição itinerante de figurinos de David Bowie foi criado em Londres pelo Museu Victoria & Albert, uma instituição industrial que se especializou no artesanato, não nas artes plásticas. O V&A esteve corajosamente na vanguarda ao exigir respeito para a indústria têxtil e o design de moda, em um momento em que a moda não era levada a sério por universidades ou pelo movimento feminista. Estou muito orgulhosa de ter feito parte do projeto de Bowie: o V&A me convidou para escrever um ensaio sobre o músico e sobre identidade de gênero para o catálogo da exposição, que já foi traduzido para vários idiomas, já que a mostra viaja o mundo. Bowie teve um enorme impacto sobre mim e minhas ideias quando ele surgiu no cenário internacional no início da década de 1970, quando eu ainda estava na faculdade. Quando visitei o V&A em Toronto, no ano passado, fiquei espantada com as longas filas de jovens esperando ansiosamente para entrar. Foi uma demonstração do apelo de Bowie às massas através das gerações.

Qualquer coisa que atraia jovens para museus e os apresente à experiência do museu tem que ser enxergada como positiva para as artes a longo prazo. Neste caso, porém, David Bowie não era apenas uma estrela pop, mas um pioneiro da arte performática, que tomava forma no final dos anos 1960 e início dos anos 70 e continuaria a ser um gênero dominante nos 25 anos seguintes. Além disso, as capas ousadas de grandes álbuns de Bowie, especialmente a de Aladdin Sane, se tornaram ícones mundiais instantâneos e fazem parte da história das artes visuais. Por isso, a mostra da V&A tem todo o direito de ser apresentada em um museu.

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Falando sobre cultura pop, Nicki Minaj, no clipe de Anaconda, e Jennifer Lopez e Iggy Azalea, em Booty, nos fez perceber que a cultura americana está sendo “invadida” por derrières. Por que a senhora acha que isso está acontecendo? Enquanto eu crescia, nos Estados Unidos da década de 1950 e início dos anos 60, ninguém pensava em nádegas de mulheres, que eram comprimidas, até parecer uma mera protuberância, pelas roupas que elas usavam. Anúncios e filmes mostravam apenas seios e sutiãs. Ouvíamos falar de turistas que iam à Itália e tinham suas nádegas beliscadas na rua e não entendíamos o porquê.

Mas isso era parte da cultura branca dominante, que governava os EUA, então um país fortemente protestante. Enquanto isso, havia uma longa tradição entre os afro-americanos de glorificar o “bumbum” bem torneado, um tema que pode ser verificado em letras de artistas negros, como a de She’s a Brick House, do grupo Commodores, de 1977. “Brick house” é uma gíria que indica uma mulher sexy com grandes quadris.

Mas nada mudou até que Jennifer Lopez fez um ensaio fotográfico para a revista Vanity Fair, em 1998, em que ela mostrava suas amplas nádegas, envoltas em seda branca, para a câmera. Foi a primeira vez no jornalismo americano que uma grande publicação mostrou a erotização dos bumbuns.

Depois da foto, o mundo mudou do dia para a noite. Ano após ano, as nádegas das mulheres vêm se tornando mais e mais importantes na cultura popular e na iconografia americana. A importação de novidades brasileiras, como o biquíni fio dental, a depilação com cera (chamada de “Brazilian” nos EUA) e implantes de silicone, acelerou esse processo. Estrelas da música como Beyoncé e Rihanna agora mostram seus derrières bem torneados nos palcos e fora deles, e até mesmo cantoras caucasianas como Miley Cyrus tentam entrar na onda com o “twerking” – uma dança de teor sexual em que se sacodem as nádegas, criada por afro-americanos de New Orleans.

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