Guru da alimentação saudável, autora de receitas como churrasco de melancia e refogado de casca de melão (“Fica igual a chuchu”), a quituteira Bela Gil, de 31 anos, prepara-se para estrear nova temporada de Bela Cozinha, seu programa na TV a cabo, em que vai ensinar a fazer, entre outras esquisitices, almôndega de casca de banana e pimenta de semente de mamão. “Quero incentivar o uso integral dos alimentos”, diz. Ela também vai apresentar uma atração inédita com depoimentos de mulheres do interior que mantêm vivas as tradições locais. Tudo gravado com antecedência. Bela tirou um ano sabático e, com o marido e dois filhos a tiracolo, está morando em Pollenzo, pacata cidadezinha no norte da Itália, onde faz mestrado na Universidade de Ciências Gastronômicas, ligada ao movimento Slow Food. Formada em culinária e nutrição em Nova York, onde viveu por dez anos, a filha mais natureba de Gilberto Gil encara seu trabalho com enorme seriedade e diz que gostaria de saber mais sobre as posições do presidente Jair Bolsonaro em relação a agricultura, meio ambiente e economia alimentar. A seguir, sua entrevista.
A senhora se tornou figura popular em memes na internet que fazem piada com as coisas que ensina. Isso a incomoda? Pelo contrário. Acho divertidíssimo. Os memes me ajudaram muito a ficar conhecida e a divulgar as ideias em que acredito. Vai ter gente que achará loucura usar cúrcuma como pasta de dente, fazer um desodorante natural, comer a própria placenta, mas também vai ter gente que achará incrível.
Comer placenta não é meio exagerado? Pode soar estranho, sim, para quem nunca ouviu falar disso. Para mim, foi uma coisa normal. Eu comi, minhas amigas comeram. Depois de tantos anos de exposição, já deu para perceber que aquilo que eu faço e defendo não é normal para todo mundo.
Placenta tem gosto de quê? A minha, de pasta de amendoim com banana. Quando falo que comi a placenta, as pessoas acham que a fiz que nem fígado acebolado, na frigideira. Não teve nada disso. Eu bati um pedaço pequeno numa vitamina com o que tinha à mão e sequei o restante, para fazer algumas pílulas, que tomei depois.
A senhora faz algum tipo de dieta? Dieta, para mim, é igual a remédio, que a pessoa só toma se está precisando. Pessoalmente, quando sinto a necessidade de dar um reset no corpo ou na mente, eu jejuo. Não aquele jejum intermitente, intercalado de uma ou outra refeição. O meu processo é ficar sem comer por alguns dias. É maravilhoso para a mente, clareia muito as ideias.
“Quando falo que comi a placenta, as pessoas acham que a fiz que nem fígado acebolado, na frigideira. Eu bati um pedacinho numa vitamina com o que tinha à mão e sequei o resto para fazer pílulas”
Quanto tempo a senhora gasta tentando convencer as pessoas próximas a mudar seus hábitos alimentares? Alimentação é uma coisa muito particular, e é difícil convencer alguém a mudar. Com os amigos e a família, procuro pegar leve, dar o exemplo. Se bem que o pessoal me vê como alguém muito mais xiita do que realmente sou. Eu como de tudo: sorvete, pizza, batata frita. Essas delícias também podem ser saudáveis.
O que é uma alimentação saudável? Basicamente, é a que vem da natureza, menos mecanizada e mais natural, mais manual, mais caseira. Uma macarronada da vovó, feita em casa, pode ser muito mais saudável do que um pacotinho de chips sem glúten nem lactose totalmente processado.
No Brasil, 14% da população se diz vegetariana, e esse número vem crescendo. A que atribui esse comportamento? Tenho a impressão de que muitos jovens estão virando veganos e vegetarianos porque é cool. Faz parte da juventude, principalmente da adolescência, defender causas e definir seu papel no mundo. Enfim, pode ser modismo, mas o fato é que sai todo mundo ganhando: os animais, o meio ambiente e a saúde das pessoas.
A senhora é vegetariana? Voltei a ser há um ano e meio. Na verdade, nunca fui de comer muita carne, mas por um tempo quis ter essa liberdade. O que me motivou a voltar, para ser muito sincera, foi a preservação do meio ambiente, que sofre enormes danos causados pela agropecuária e outros aspectos da criação em grande escala de animais para corte. A saúde, nessa minha decisão, ficou em último lugar.
Como assim? Penso muito no fato de que existe tanta gente que planta e tanta gente que passa fome no Brasil. Estamos produzindo cada vez menos comida e mais produtos altamente processados, à primeira vista muito baratos, mas que carregam um custo ambiental e social estratosférico. A pessoa que não tem dinheiro para comprar comida de verdade vai pegar três pacotinhos no mercado e consumir ali toda a energia de que precisa em um dia inteiro. São alimentos viciantes, têm gosto bom, e as grandes indústrias tiram proveito disso.
Na sua opinião, o que pode ser feito para reverter essa situação? No plano econômico, é necessário revisitar o modelo do agronegócio brasileiro. O governo precisa criar políticas públicas para ajudar a manter os pequenos produtores no campo. Na sociedade, é urgente a conscientização de que comer é um ato político. A elite, sobretudo, deve consumir mais comida de verdade, para deixar de poluir a Terra. Além disso, a democratização do acesso ao alimento orgânico, de qualidade, vai baratear o preço para todo mundo.
Ao mesmo tempo em que prega a alimentação natural, a senhora empresta seu nome a produtos de grandes marcas. Não é contraditório? Depende. A tapioca orgânica é uma opção mais saudável e menos prejudicial ao meio ambiente do que a convencional. É muito raso falar em contradição. Não vejo contradição no que eu faço.
O óleo de coco, recomendado em seus programas, aparece em uma pesquisa da Universidade Harvard como “um dos piores alimentos que alguém pode comer”. Endossá-lo foi um erro? Desculpe, mas essa nutricionista da Harvard tem uma visão antiquada das coisas. Posso mostrar a você milhões de estudos que dizem que o óleo de coco é bom pelos motivos x, y e z. É claro que tudo depende do bom-senso. Muitas pessoas estavam tomando óleo de coco para emagrecer. Gente, é óleo, é gordura. Se você tomar litros de óleo de coco, obviamente o efeito será maléfico.
Educação alimentar se ensina na escola? Deveria ser ensinada, sim. Aprender a comer bem quando criança é o melhor jeito de levar uma alimentação saudável para o resto da vida. Temos de acabar com a ideia de que bala, biscoito e pirulito são comidas de criança.
Seus filhos não comem nada disso? Não. Em casa a comida é regrada. Mas eles são livres para experimentar. Se a Flor, que tem 10 anos, vai a uma festa e tem bolo e brigadeiro, ela come. Nunca fiz brigadeiro em casa, mas comer ali, na festinha, não vai fazer a menor diferença na vida dela. Mais importante é a gente parar de achar que adulto que não come açúcar está cuidando da saúde e que criança que não come açúcar é coitadinha.
Por que a senhora pôs o vídeo do parto de seu segundo filho, Nino, de 2 anos, na internet? Primeiro, para combater a ideia de que o parto domiciliar não é seguro. Segundo, para trazer o ato de nascer para o mundo real, como coisa natural. Se você perguntar a uma criança urbanizada como é um parto, ela talvez nem saiba por onde o bebê sai. Na TV, parto normal é sempre horrível, um sofrimento, enquanto na cesárea é tudo pleno, maravilhoso. A realidade não está em nenhum dos dois cenários.
Onde está a realidade? Você pode ter uma cesárea humanizada e um parto normal violento, como foi o meu no nascimento da Flor. Eu não tinha muita informação na época e, sem ser avisada nem consultada, passei por procedimentos que arruinaram minha vida sexual por um ano.
Você teve a Flor aos 20 anos, morando fora, começando a faculdade, longe da família. Chegou a pensar em abortar? Algumas amigas me perguntaram mesmo se eu ia tirar, mas sempre quis ser mãe. Uma coisa é não planejar, outra é não desejar. Não que eu seja contra o aborto, pelo contrário. Proibir o aborto é uma forma de feminicídio. Ele acontece, é um fato, e, se não dermos às mulheres a possibilidade de fazê-lo com segurança, elas vão morrer.
Seu novo programa conta a história de mulheres de vários pontos do Brasil. Alguma experiência a marcou mais? Acho que a mais impactante se deu no Acre, onde participei de um ritual de cura liderado por uma mulher que era pajé. Tomei ayahuasca pela primeira vez, e foi incrível. Já havia tido a oportunidade, mas nunca tinha sentido vontade. Lá era o lugar propício.
O que sentiu? Dizem que a maioria passa mal, vomita, mas eu não sofri nada fisicamente, só um pouco de enjoo. Tinha total consciência de que meu corpo se encontrava preso no chão, mas não exercia o menor controle sobre a minha mente. Uma hora estava tudo preto, na outra eu via imagens maravilhosas de serpente, jacaré. Brinco que o efeito em mim foi algo parecido com o filme Avatar.
“Estou em uma sinuca. O presidente é a última pessoa que eu queria ver eleita, porque vai contra princípios em que acredito. Ao mesmo tempo, preciso torcer para que faça algo bom”
A senhora consome algum tipo de droga? Se a gente considerar álcool uma droga, e eu considero, de vez em quando tomo vinho, aprecio uma caipirosca. De maconha eu nunca gostei, nem na adolescência, quando todos os meus amigos fumavam. Eu saía com eles, ia para a cachoeira, todo mundo fumava e eu era a única que ficava de fora.
As drogas devem ser legalizadas? A legalização é uma grande ferramenta para a gente construir um futuro mais pacífico. Qualquer proibição resulta em violência, e o único jeito de viver em paz é liberando as drogas.
Como vê o momento político no Brasil? Estou em uma sinuca. O presidente é a última pessoa que eu queria ver eleita, porque vai contra muitos princípios em que acredito. Ao mesmo tempo, preciso torcer para que ele faça algo bom. Queria entender melhor sua visão sobre agricultura, meio ambiente, economia alimentar, mas, quando ele toca no assunto, são frases rasas, feitas para iludir.
Tem vontade de entrar na política? Vontade eu tenho, mas não sei quando, nem o que faria. Desanima às vezes trabalhar, trabalhar e as coisas não saírem do lugar. Acho que dentro da política eu teria a chance de promover mudanças mais efetivas. Já existe até uma hashtag, #belapresidente, circulando pela internet. Mas sou low profile demais para chegar a isso.
Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622
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