Zain (Zain Al Rafeea) tem uns 12 anos (seus pais não sabem dizer) e tamanho de 7 ou 8. Franzino, com ossos de passarinho, sempre sujo e maltrapilho, o menino — o mais velho de uma penca de irmãos — empilha caixas de refrigerante, puxa botijões de gás por quarteirões, vende suco na rua e, de maneira geral, sustenta a família. Zain tem também uma fúria dentro de si: a indignação com a miséria abjeta em que vive, e a revolta com o pai e a mãe, que não param de ter filhos e condená-los a esse mundo — e por isso mesmo, por terem-no obrigado a nascer, ele está processando os pais no tribunal. Ao qual comparece em algemas: alguma crise, possivelmente ligada à venda de sua irmã de 11 anos para um homem adulto, levou Zain a cometer um crime, pelo qual ele deve passar cinco anos preso.
Terceiro longa da libanesa Nadine Labaki, de Caramelo (2007) e E Agora Onde Vamos? (2011), Cafarnaum (Capharnaüm, Líbano/Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, toma seu título da cidade em que Jesus realizou muitos de seus milagres e pregações. A referência é metafórica: de mais de 500 horas filmadas, a cineasta tirou 120 minutos de uma odisseia implacável pelas favelas de Beirute, no Líbano, país aonde a chegada de mais de 1 milhão de refugiados tornou catastrófica uma situação que já era drástica. Todos os protagonistas — à exceção de Nadine, no pequeno papel da advogada do garoto — são não atores, e vivem na tela versões muito próximas de si mesmos, incluindo-se o juiz. Ninguém é mais extraordinário, no entanto, do que o refugiado sírio Zain Al Rafeea, que está em cena todo o tempo e infunde o filme com seu desespero, e com sua maturidade tristemente precoce.
Cafarnaum convida a um lugar-comum: há, verdadeiramente, algo de materno na compaixão de Nadine — e também na ferocidade com que ela encampa a tragédia de Zain e a de Rahil (Yordanos Shiferaw), a imigrante etíope ilegal que o acolhe em certo momento e que confia ao garoto os cuidados de seu bebê. Yordanos foi presa dias depois de filmar, pelo mesmo motivo que sua personagem — falta de documentos. A desgraça, em Cafarnaum, é abissal. E sua beleza, fulminante.
Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618
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