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Animação brasileira sobre assassinato na ditadura concorre no Annecy

'Meu Tio José' é o primeiro filme nordestino a conquistar um espaço no principal festival de animação do mundo

Por Amanda Capuano 14 jun 2021, 10h49

Em junho de 1983, José Sebastião de Moura estava em uma farmácia quando um homem muito bem-vestido entrou no local o chamando pelo nome. Assim que atendeu ao chamado, o indivíduo misterioso ordenou: “fique onde está”, e disparou dois tiros contra ele. José morreu dois dias depois no hospital. Na ocasião, ele estava se restabelecendo no Brasil após passar dez anos exilado na França pelo envolvimento no sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969, que resultou na libertação de 15 presos políticos, e no exílio dos sequestradores. Perdoado pela anistia geral concedida por Figueiredo em 1979, ele voltou ao país, mas sua estadia durou pouco.

O caso, que até hoje está sem solução, é o fio condutor da animação baiana Meu Tio José, primeiro longa nordestino a concorrer no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, o maior e mais importante do setor no mundo, que acontece entre os dias 14 e 19 de junho. O filme é o primeiro dirigido pelo cineasta Ducca Rios, sobrinho de José Sebastião, que conta a história do tio a partir da perspectiva de uma criança de 10 anos, inspirado nele mesmo na infância.

Confira entrevista com Ducca:

Meu Tio José é o primeiro filme nordestino a chegar ao Festival Annecy, por que isso é tão difícil? É uma coisa rara para qualquer país porque é o principal festival de animação do mundo. Neste ano, foram 98 países concorrendo e mais de 2.000 filmes no total. Houve uma evolução na animação nacional em função das políticas de fomento à cultura, iniciada no governo Lula, na gestão do Gilberto Gil. Isso fez com que o audiovisual no geral, incluindo as animações, tomasse um novo rumo. De lá para cá, temos chegado aos festivais com cerca frequência: teve História de Amor e Fúria, O Menino e o Mundo, Tito e os Pássaros e agora com Meu Tio José e Bob Cuspe, do Cesar Cabral. Infelizmente, nós corremos o risco de perder essas iniciativas tão bem-sucedidas. O que é uma pena porque se continuássemos nesse ritmo, o Brasil se destacaria de uma forma muito especial no mercado de animação.

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O filme conta a história do seu tio a partir do ponto de vista de uma criança, que no caso era você. Como era sua relação com ele? No começo era uma relação de histórias contadas pela minha família. Ele ficou dez anos exilado na França e veio morar com a gente quando voltou. O José era uma pessoa muito calada, mas aos poucos se aproximou dos sobrinhos e se revelou atencioso e doce. Nós tivemos uma relação de mestre e aprendiz. Ele gostava muito de mar e me ensinou a nadar. Eu já me considerava desenhista aos 10 anos e adorava ver o José trabalhando com desenhos e fazendo pequenas esculturas com massa de modelar. Absorvi esse lado dele também e, depois de sua morte, herdei seus materiais e desenhos. Foi uma relação muito bacana apesar do pouco tempo de convívio pessoal. 

A história é baseada em um fato, o assassinato do seu tio pela ditadura, mas há elementos ficcionais. Quais são eles? Eu criei um paralelo da ditadura militar para criança, então há uma narrativa para amarrar a história. Transformei a escola em um quartel, coloquei a diretora com uma postura militar autoritária, o Bedéu como uma espécie de soldado e o bullying como uma forma de repressão, como se o Adonias sofresse o que os adultos que se opunham à ditadura sofriam. Dentro dessa ficção eu coloquei coisas que aconteceram ao longo da minha vida e das histórias que eu ouvia. A redação Meu Tio José, por exemplo, eu escrevi um pouco mais velho, e tirei dez. 

Meu Tio José
Ducca Rios e Adonias, protagonista de Meu Tio José inspirado nele próprio na infância (Maria Luiza Barros/Divulgação)

Seu tio esteve envolvido com a luta armada e com o sequestro do embaixador americano. Como enxerga essas ações hoje? Eu não posso me colocar na pele do José, mas consigo imaginar a pressão sofrida por quem viu a liberdade ser cerceada, sem poder de reação. Em uma democracia, você reage pelo voto ou expressando sua opinião, mas isso é impossível em uma ditadura, então consigo entender o José, e muitas outras pessoas, terem feito o que fizeram. Eles chegaram em um momento em que consideraram ter que agir de uma forma radical, e tiveram alguns êxitos com isso. Era uma resistência pequena em número, e que foi sempre abatida pelo poderio militar, mas que conseguiu libertar presos políticos e pressionar o governo pela reabertura. Sou contra a violência e acredito que com ódio só colhe ódio, mas compreendo o que se passou pela cabeça das pessoas encurraladas por um regime tirânico.

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O caso do seu tio é conhecido, mas muitas pessoas perderam parentes durante a ditadura. Como isso afeta uma família? Para nós foi muito duro porque era um momento de felicidade.  Ninguém via ele há muitos anos e o retorno veio em um  momento em que as diretas já estavam começando a ganhar as ruas, então havia esperança de algo além no horizonte. O José e outros exilados que voltaram representavam isso e, de repente, a vida dele foi arrebatada de maneira brutal. Foi muito duro também buscar justiça e não conseguir. Nós fizemos de tudo, mas não conseguimos nada, delegados foram trocados e o crime ficou sem solução. O filme foi a resposta que eu criei, e uma forma de tirar o José da invisibilidade e, junto com ele, outras pessoas que também se sentem injustiçadas.

Acredita que houve interferência militar para barrar a investigação? Tudo leva a crer que sim. A gente ainda estava sob uma ditadura, então nada era feito com transparência. Eu tenho convicção de que houve interferência, mas não sei em que nível isso se deu. Não havia muito interesse na verdade e até hoje se sabe pouco sobre o crime. Os assassinos chamaram ele pelo nome, atiraram e foram embora sem levar nada. Foi o que relataram as testemunhas, e que está representado no filme. Eles chegaram em uma motocicleta muito bem vestidos, de paletó e chapéu, executaram o José e foram embora. 

Estamos em um momento político em que diversas pessoas questionam a existência de uma ditadura militar, ou pedem pela volta dela. Como você espera que o filme seja recebido nesse contexto? O filme serve para mostrar que uma ditadura não é um momento bom, é ruim em todos os sentidos. Você é impedido de ter a sua liberdade, você não pode se expressar e o que é feito pelo Governo não é transparente, só se sabe o que é autorizado divulgar. Isso não é um Estado bom para ninguém e quem ousa falar contra sofre retaliações. Eu não sei como alguém pode ver isso como algo positivo, chega a ser um contra senso. O filme mostra, através do sofrimento de uma família, o que é uma ditadura militar para que ela nunca mais aconteça.

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