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A vertigem do riso

O segundo volume da “autobiografia desautorizada” de Jô Soares cobre os anos de maior ebulição criativa do memorialista

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 nov 2018, 08h56 - Publicado em 30 nov 2018, 07h00
‘O Livro de Jô — Volume 2’, de Jô Soares e Matinas Suzuki Jr. (Companhia das Letras; 336 páginas; 69,90 reais ou 39,90 reais em versão digital) (//Divulgação)

Presidente do grupo empresarial Ultra — e, nos porões, apoiador e financiador da Operação Bandeirante, que prendeu e torturou guerrilheiros e militantes esquerdistas —, o dinamarquês Henning Albert Boilesen foi assassinado por grupos da esquerda armada em São Paulo. No dia do atentado, 15 de abril de 1971, estava programada uma convenção de gerentes da Ultralar, um dos braços do grupo. Garoto-propaganda da loja, Jô Soares compareceu ao evento com a capa e a roupa do Capitão Ultralar, personagem que encarnava nos comerciais de TV. Sentiu que o clima estava pesado quando o elevador do edifício onde se daria a convenção foi tomado por executivos e militares “com cara de pouquíssimos amigos”. Já então um nome de peso — não só no sentido figurado da palavra — do humor nacional, Jô percebeu que aquele não seria o momento de fazer graça. Com sua fantasia festiva tão deslocada naquele ambiente, sentiu-­se “como um fool shakespeariano numa tragédia histórica”. Até então, diz o artista no segundo volume de O Livro de Jô, sua “autobiografia desautorizada”, ele não tinha conhecimento das ligações escusas entre o grupo Ultra e a repressão.

O episódio fecha o primeiro capítulo deste novo volume — como o primeiro, escrito com a colaboração do jornalista e editor Matinas Suzuki Jr. —, e logo na página seguinte a narrativa salta para a fundação de O Pasquim, o libertário veículo jornalístico-­humorístico dos anos de chumbo. Jô seria processado por um texto breve publicado no número 20 do jornal, um ensaio cômico-erótico com o título A Cama, que Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do governo Médici, julgou obsceno. Mal há tempo para absorver o choque do episódio anterior, no qual o inocente Capitão Ultralar descobre que seu empregador gostava de assistir a sessões de tortura, e já entra em cena a irreverência do Pasquim: o turbilhão que sempre foi Jô Soares, cuja criatividade maníaca parece precisar de todos os meios de expressão — teatro, televisão, cinema, literatura, artes plásticas, rádio, publicidade —, não concede um momento de descanso ao leitor. O livro vai encadeando, uma atrás da outra, anedotas sobre a vasta galeria de artistas, políticos, celebridades que o agitado memorialista conheceu, do bispo brasileiro dom Helder Câmara ao ator francês Alain Delon, em uma vertigem na qual se misturam e confundem temas, épocas, registros emocionais distintos.

TIPOS MEMORÁVEIS – O Capitão Gay (à dir.) e seu escudeiro, Carlos Suely (Eliezer Motta): uma revolução do humor (CEDOC/TV Globo)

O primeiro volume encerrava-se às vésperas da contratação de Jô Soares pela Globo, em 1969. Começa ali uma sequência de programas memoráveis, que de uma forma ou de outra foram contornando a censura para satirizar a política e a sociedade brasileiras: Faça Humor, Não Faça Guerra, Satiricom (programa não tão bem-sucedido: o próprio Jô diz que não gostava de trabalhar nele), Planeta dos Homens e, já no últimos anos da ditadura, Viva o Gordo. Depois, no SBT, em 1988, Jô embarcaria em um pioneiro talk show de fim de noite, o Jô Soares Onze e Meia. Voltaria para a Globo em 2000, para fazer o Programa do Jô, encerrado em 2016. É uma trajetória ímpar, na qual se concentra um naco considerável da história cultural do país.

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MEU NEGÓCIO É NÚMEROS – O personagem Sardinha e Delfim Netto: sátira (CEDOC/TV Globo)

Jô, aos 80 anos, rememora sua rica carreira com palpável orgulho por tantas realizações. Lembra bordões que o Brasil repetia — “O macaco tá certo”, “Bota ponta, Telê” — e personagens que marcaram a TV, como o Capitão Gay, um super-herói LGBT quando ainda não se consagrara essa sigla, e o Doutor Sardinha, que satirizava a passagem do hiperinflacionário economista Delfim Netto pelo Ministério da Agricultura, no governo do general Figueiredo. Jô também recorda as entrevistas mais marcantes de seus dois talk shows — incluindo a conversa, no Palácio do Planalto, com a presidente Dilma Rousseff, em 2015, seis meses antes do início do processo de impeachment. A polarização mais raivosa mostrou sua cara feia então: a rua em frente ao prédio do entrevistador amanheceu com a pichação “Jô Soares morra”. “A primeira providência que tomei foi não seguir o conselho e não morrer”, diz o memorialista.

É um livro cordial, no qual o autor celebra colegas e amigos superlativamente — são muitos “queridíssimos” ao longo do texto. Mas há alguns saborosos acertos de contas. Jô diz que sempre teve e ainda tem ótima relação com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, por muitos anos o todo-­poderoso da Rede Globo. Mas não deixa de registrar as atitudes mesquinhas de Boni quando uma das estrelas da casa se bandeou para a emissora de Silvio Santos. Boni chegou a ponto de telefonar para Jô exigindo a devolução de duas sungas, parte do figurino do Capitão Gay. Jô vasculhou seus armários, mas só encontrou uma das sungas — que devolveu à Globo, acompanhada de um cheque para cobrir o item perdido.

CONVERSA COM O PODER – Com Dilma Rousseff: às vésperas do impeachment (Roberto Stuckert Filho/PR/.)

Entre um e outro episódio autobiográfico, Jô às vezes se permite algumas belas digressões ensaísticas — a melhor delas é o paralelo insuspeito entre dois gordos que o autor muito admira, o cineasta americano Orson Welles e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill. Com frequência, porém, o tom entre anedótico e autocongratulatório do livro redunda em superficialidade. A obra ganharia se perdesse algumas historietas engraçadas em prol de momentos de maior franqueza emocional do autor. É o mais estranho Gordo o que se encontra nessas páginas, quase desprovido de substância interior — salvo em poucas passagens comoventes mas demasiado breves: a morte de seu filho Rafael, que sofria de autismo, em 2014, ou os dias de angústia que Jô passou neste ano, quando tratava uma infecção urinária no Hospital Sírio-­Libanês e descobriu que em um quarto vizinho seu amigo Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo, estava à morte.

Não admira que este seja um livro tão cheio de ação e agitação. Jô Soares fez de tudo, e fez demais. Nas páginas finais de O Livro de Jô, o leitor encontra um inventário de sua produção até aqui: em sessenta anos de atividade profissional, 1 300 dias de programas de humor na TV, 14  426 entrevistas, 24 peças de teatro que dirigiu e onze nas quais atuou, nove livros (já contando a autobiografia recém-lançada), oito exposições de pintura, um show de música, e por aí vai. Não são só os números que impressionam, mas também (ou sobretudo) o talento do artista e o acerto de suas investidas: a revolução do humor que programas como Planeta dos Homens representaram, as entrevistas históricas do Jô Onze e Meia nos anos da redemocratização brasileira, os milhões de exemplares vendidos com títulos de ficção como O Xangô de Baker Street. “Eu só existo por causa da plateia; preciso dela para viver”, diz Jô Soares, que se assume como “exibido”, mas também encontra uma razão maior para seu exibicionismo: “Dediquei a minha vida a fazer a vida dos outros um pouquinho mais alegre”. As plateias — e também os leitores — agradecem.

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611

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