À beira da morte, um escritor de thrillers policiais contrata uma jornalista obcecada pelo gênero para escrever sua biografia. Com milhares de livros vendidos, Sebastian Trapp tem pontas soltas em sua história: a começar pelo réveillon de 1999, quando sua esposa e o filho adolescente desapareceram sem deixar rastros. Vinte anos depois, o sumiço ainda alimenta teorias, incluindo a de que o autor teria assassinado a família. Instigante e magnético, o enredo é fio condutor de Ponto Final, o segundo livro de A.J. Finn — que estourou em 2018 com o thriller A Mulher na Janela, vertido em filme pela Netflix, com Amy Adams no protagonismo.
Com mais de 5 milhões de livros vendidos, A.J. Finn, pseudônimo de Dan Mallory, de 45 anos, também coleciona sua dose de mistérios (e polêmicas) na vida real: em 2019, um artigo da revista The New Yorker revelou que o nova-iorquino estava envolto em mentiras: incluem-se aí um doutorado falso, a morte da mãe e do irmão (que estavam vivíssimos e chegaram a acompanhá-lo em viagens publicitárias) e até um suposto câncer inoperável.
Diagnosticado com bipolaridade, Mallory questionou as fontes anônimas do artigo que chamou de “fantasioso”, mas confessou já ter mentido muito na vida — especialmente, alega ele, ao tentar esconder a condição mental. “Há quinze anos eu não diria a ninguém que receberia terapia de choque, ou que estava com dificuldades com a medicação”, contou ele a VEJA. “Dizia qualquer outra coisa. Que ia a uma viagem que não existia ou que estava preocupado com algum tipo de tumor, que era um medo recorrente meu. Menti sobre outras coisas também, mas quem não mente quando é jovem?”, disse.
A mulher na janela – A. J. Finn
Mallory não é o primeiro escritor a tecer contos fantasiosos a respeito de si próprio, como estratégia de marketing editorial. Nos anos 1990, o autor J.T. LeRoy, que até virou tema de um filme que leva o nome dele, de 2018, com Kristen Stewart, se pintou como um ex-garoto de programa soropositivo abusado pela mãe adicta, quando, na verdade, era uma invenção da roteirista americana Laura Albert. Em 2008, revelou-se que Margaret B. Jones, autora do livro de memórias Love and Consequences, em que diz ter pulado de abrigo em abrigo na infância, em uma área infestada de gangues, era, na verdade, Margaret Seltzer: uma mulher branca criada em paz e prosperidade pela família biológica em um bairro rico de Los Angeles. Em comum, esses escândalos mostram escritores que rebaixaram sua posição social, criando uma falsa autenticidade para suas obras.
Love and Consequences – Margaret B. Jones
Apesar das similaridades com o caso de Mallory no capítulo fake news, o autor está alguns bons degraus acima no quesito literário. Os últimos anos foram uma montanha-russa para o homem por trás de A.J. Finn. A fama meteórica trouxe a exposição das inverdades e julgamentos advindos disso. O autor, então, enfrentou dificuldades para finalizar seu segundo livro, que chega às estantes seis longos anos depois do antecessor. Ele conta (acredite se quiser) que a obra só saiu depois de retomar as sessões de eletroconvulsoterapia (ECT), procedimento ainda usado nos dias de hoje para tratar alguns casos psiquiátricos graves. “Me ajudou a cruzar a linha de chegada”, diz ele. O autor descreve o novo livro como “mais ambicioso e sofisticado” que o anterior. Sobre o coprotagonista misterioso, admite que há certo reflexo de si mesmo. “Ele se importa com o que os outros pensam, e eu também”, compara. “Mas não sou tão engraçado ou esperto quanto ele.” No caso de Mallory, ficção e realidade são partes inseparáveis do enredo.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894