‘A Filha Única’: obra de autora mexicana expõe mal-estar com tabu feminino
Livro faz aposta em um tema difícil e atualíssimo: as dificuldades da maternidade

“Devo admitir que nunca me dei bem com crianças. Se elas se aproximam de mim, eu as evito e, quando preciso interagir com elas, não tenho a mínima ideia de como fazê-lo.” A confissão da narradora Laura está logo na abertura do livro A Filha Única, da mexicana Guadalupe Nettel. A protagonista é uma mulher independente que adora viajar e estuda na França. Aos 30 e poucos anos, está concluindo doutorado, e seu companheiro gostaria de ter um filho. Laura nem cogita a possibilidade: estima sua liberdade, seu corpo e, sem avisar seu namorado, faz uma laqueadura. O filho não vem, o relacionamento termina e Laura retorna ao México para concluir sua tese acadêmica.

O tema da maternidade perpassa todo o romance, tanto na decisão de Laura como na surpreendente gravidez de sua melhor amiga, Alina, outra mulher que não pensava em ter filhos para priorizar a carreira. Talvez sob impulso do sucesso global das obras da italiana Elena Ferrante, a literatura tem aberto espaço ao questionamento de um daqueles tabus que despertam paixões ferozes: o de que seria um dado inerente da condição feminina desejar ter filhos e cuidar deles. O êxito recente da adaptação cinematográfica de A Filha Perdida, com a ótima Olivia Colman no papel principal do livro de Ferrante, lembrou a sociedade que, sim, mulheres também podem abandonar sua prole em busca de um grande amor ou para crescer profissionalmente. O tema é inflamável — logo, bastante indicado para ser retratado em obras literárias.
No caso de A Filha Única, a protagonista Laura tem traços biográficos em comum com a autora, que também estudou na França e decidiu não ter filhos. Já Alina é inspirada em Amelia Hinojosa, como a própria Guadalupe conta na dedicatória de seu livro, agradecendo a generosidade da amiga que deixou sua história ser publicada e concedendo à autora “a liberdade de inventar, quando necessário”. O livro dá uma guinada e ganha tração quando Alina e seu marido são avisados de que o cérebro da bebê não se desenvolveu como esperado e muito provavelmente ela morreria pouco após o nascimento. A mãe grávida e a bebê que carrega são submetidas a um teste para detectar a presença do zika, numa passagem que remete aos tristes e recentes episódios no Brasil, quando mais de 3 400 crianças nasceram com microcefalia devido ao vírus.
Enquanto Alina e seu marido iniciam o périplo de exames, consultas médicas e preparação para a chegada de uma criança que nem sequer sabem se vai sobreviver, Laura engata uma jornada pessoal questionando sua posição como mulher, filha única e que decididamente não quer ter filhos. A relação com sua mãe é conflituosa. Há algo mais que o tradicional embate e a pressão da progenitora por uma gravidez da filha e um netinho — a mulher de 30 e poucos que nunca vivenciou isso que atire a primeira pedra. Mãe e filha se comparam e se provocam mutuamente, num jogo de forças que supera a diferença geracional.
A decisão da protagonista de não ter filhos e a complicada gravidez de Alina compõem o painel sobre maternidade e feminilidade que a autora pinta em sua obra. Mas, ainda que esteja longe de ser um panfleto, o livro lida com esses assuntos de uma forma previsível. Pesando méritos e falhas, talvez o maior engenho da obra de Guadalupe Nettel seja sua atualidade, ao retratar os dilemas das mulheres em busca de autonomia completa para sua vida. É uma discussão delicada — mas necessária.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786
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