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A difícil missão do autor de ‘Torto Arado’ ao lançar novo livro

O escritor baiano Itamar Vieira Junior lança 'Salvar o Fogo', parte da trilogia iniciada com a obra de sucesso sobre as irmãs Bibiana e Belonísia

Por Diego Braga Norte Atualizado em 3 Maio 2023, 15h01 - Publicado em 2 Maio 2023, 09h00

O escritor baiano Itamar Vieira Junior, 43, acaba de lançar seu segundo romance, Salvar o Fogo, continuação da trilogia sobre a terra iniciada com Torto Arado — sucesso editorial de público e crítica que já vendeu mais de 700.000 cópias. Ciente do patamar que conquistou, Vieira Junior diz que não está ansioso em repetir o êxito de estreia, mas entende que ter de cumprir a expectativa de seus leitores é uma missão inevitável. Em entrevista a VEJA, ele revela como foi a escrita de sua nova obra e explica a importância da terra em suas criações e em seu trabalho como geógrafo concursado do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Mesmo não sendo religioso, o autor também demonstra interesse pelo lado humano das religiões e fala sobre como as teorias decoloniais inspiram suas obras.

Confira a entrevista na íntegra:

Depois do sucesso de público e crítica de Torto Arado criou-se uma expectativa para seu novo livro. Como lidou com isso? Eu nunca imaginei tudo o que Torto Arado provocaria, mas minha relação com a literatura antecede e transcende este livro. Para escrever Salvar o Fogo, tive de abandonar Torto Arado, que hoje pertence aos leitores. São eles que divulgam, carregam o livro, propagam a história. Eu tinha um prazo razoável para entregar, extrapolei muito, mas não me pressionaram e foram bem compreensíveis, inclusive. Quem trabalha com escrita, com criação intelectual sabe que nunca vai produzir como se estivesse numa fábrica fordista, não é possível. Tem dias de escrita, outros de contemplação, pausas para reler e refletir. O processo nunca é muito linear e a escrita precisa disso, desses sobressaltos, idas e voltas. Apesar dos muitos eventos, lançamentos no exterior, consegui me desconectar do turbilhão que foi o Torto Arado. Só me desligando, pude continuar esse projeto que era algo antigo, mas fiquei adiando. Neste livro atual a dedicação foi diferente. Foi fracionada, intercalada com muitos compromissos. 

As comparações entre os livros são inevitáveis. Você está preparado para isso? Como espera que seja essa repercussão? Salvar o Fogo é um livro que pode ser admirado, mas as pessoas podem não gostar também. Isso sempre vai existir, com qualquer obra. Quando saiu o Torto Arado, me preocupei bastante com a aceitação. Tinha dúvidas se os leitores iriam gostar, como iriam receber a história. Mas hoje, para mim, não é importante mais ler resenhas, acompanhar a repercussão. Eu não quero me deixar contaminar por expectativas dos outros. Já cumpri essa etapa, o que eu tinha para escrever nos livros já foi escrito.

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Neste novo livro, há muitos elementos relacionados à sua biografia. Inclusive um personagem importante tem problemas com o alcoolismo, como seu pai teve. Como que foi para você trabalhar com memórias pessoais? Sim, tem muita coisa que eu experimentei, vivenciei. A ficção mexe muito com experiências pessoais. Mas eu transpus tudo isso para o plano da ficção, não se trata de uma autobiografia. Usei experiências pessoais e íntimas como algo que possa ser compartilhado pelo filtro da ficção. Talvez seja essa a válvula de escape. É doloroso revisitar alguns momentos do passado, sempre é difícil. Mas foi importante rever momentos da vida para poder compreender a mim mesmo, compreender como cheguei aqui.

Ambos os livros têm elementos semelhantes. Nos dois há protagonistas mulheres fortes, ligações com a ancestralidade negra e ameríndia, e, sobretudo, a questão da terra. Você mesmo já disse eles fazem parte de uma trilogia sobre a terra. Qual que é a importância da terra para você como geógrafo e como autor? A terra é importante para todos nós por inúmeros motivos. Primeiro, somos humanos  e nenhum ser humano existe sem um território. O meu território é a minha casa, é o chão em que estou. Não se pode viver em outra dimensão que não seja este onde habitamos. Ainda que tivéssemos asas, precisaríamos pousar em algum lugar para dormir. Não conheço pássaros que dormem voando. Dentre os direitos mais básicos e elementares do ser humano, o direito ao território está em primeiro lugar. A terra em que habita é indissociável do ser humano. Temos uma relação ancestral de simbiose com a terra. Hoje, no sistema capitalista, tudo vira um bem econômico, com preço. Mas a terra não é só isso, é muito mais que um bem. Nela tem valores, história, memórias, cultura e afetos. Vimos exemplos disso recentemente no noticiário. 

Pode citar quais exemplos? Tivemos inúmeras vítimas de desastres desprovidas não só de suas casas, mas da comunidade, da família, do trabalho, da cultura local, das memórias. As perguntas que talvez me movam para escrever o que eu tenho escrito são: Nós podemos prescindir da terra? Ela é um bem econômico ou algo além? Eu acredito que vá muito além, até as paisagens fazem parte da ligação afetiva das pessoas com o território, há um acúmulo de vivências e experiências. E tudo é passível de mudança, paisagens mudam, morros são devastados, a mata é retirada. Pessoas que nos antecederam já experimentaram essa jornada. Pessoas hoje vivem esse drama de serem desconectados de seus territórios. O problema da terra não é só do Brasil, é global, aflige muitas sociedades. Creio que a ficção pode nos ajudar a compreender esse drama, entender que a terra é muito mais que um valor monetário.

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Em uma passagem de Salvar o Fogo, a personagem Belonísia, de Torto Arado, é evocada. Você já tinha essa ideia de interligar os livros ou foi algo que surgiu depois? Eu sabia que alguma referência a Torto Arado surgiria, mas não sabia exatamente onde nem quando. Na verdade, a história dos personagens de ambos os livros forma uma rede que é a própria vida. Pessoas que se conhecem, criam vínculos, afetos. Eu tinha isso planejado, só não sabia se seria capaz de relacionar os dois livros, se a história me permitiria isso. Eu não falei sobre isso com ninguém, não gosto de falar enquanto escrevo. Até porque muita coisa muda. A escrita ganha por adição ou subtração. Foi reescrevendo que eu pude de fato ter certeza de que era o que eu queria e podia fazer. 

Livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (Todavia; 262 páginas)
Livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (Todavia; 262 páginas) (//Divulgação)

Suas obras tratam de questões sociais como as de Jorge Amado, têm a espiritualidade presente em livros do João Ubaldo Ribeiro, elementos do Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Guimarães Rosa. Você se considera herdeiro dessa turma? Dizer que eu sou herdeiro pode parecer até que estou com o ego muito elevado. Eu não diria que sou herdeiro, mas gostaria de ser. São autores que me formaram na literatura. São leituras que me ensinaram muita coisa sobre o Brasil, sobre mim, sobre o meio onde eu vivia. Eu compreendo quando fazem associações entre meus textos e os deles porque a influência existe e é real. Talvez as histórias de Torto Arado e Salvar o Fogo tenham um pouco dessa literatura nomeada de regionalista. Eu sempre refutei esse rótulo porque quase toda literatura faz regionalização, fala do seu lugar, da sua região.

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No primeiro livro há a presença da religião de matriz africana jarê. No segundo tem a presença dominadora do catolicismo e elementos da cosmogonia indígena. Qual é o papel da religiosidade nas suas obras, como ela perpassa suas histórias? Eu penso que a religiosidade faz parte da dimensão humana. No primeiro livro, o jarê cumpre uma função interessante para compreendermos a própria cosmovisão daquelas personagens. É isso que me atrai, não sou religioso, mas fui atraído pela prática religiosa por causa dos laços de solidariedade que permitiram as pessoas atravessarem as piores adversidades. Em Salvar o Fogo, o que está posto desde o início é uma certa religiosidade opressora da Igreja Católica. Mas não é apenas a religiosidade que me interessa, o que está posto é que sem a Igreja o empreendimento colonial escravista jamais teria dado certo. Quando os colonizadores chegaram aqui, o cristianismo e o colonialismo estavam de mãos dadas. A Igreja foi a grande detentora de escravos até o fim da escravidão. 

O papel da Igreja Católica na colonização está bem documentado, mas seu livro traz essa discussão para os dias de hoje. Como você vê a atuação das igrejas cristãs nas comunidades hoje? Eu continuo achando que é uma violência, mas mudou o perfil. No tempo das Cruzadas e depois, na colonização, isso era feito de uma maneira muito mais bárbara. Hoje, a violência está escamoteada. Ela vem como anteriormente, com a ideia de salvação, mas também traz a anulação de tudo o que existe anterior ao cristianismo. Quando igrejas evangelizadoras adentram comunidades nunca é para ouvir, mas para pregar seu modo de viver como o único e correto. Isso é feito a despeito de todo acúmulo de saberes que as comunidades negras e indígenas têm. Para mim, é uma forma de violência quando não se respeita a existência do outro, suas crenças, sua biodiversidade. O que as igrejas fazem hoje é ainda uma espécie de colonização em comunidades indígenas e de terreiro. Quando batem a sua porta e quando adentram em comunidades indígenas, muitas vezes sem permissão, é sempre para evangelizar. São ações que modificam a vida das pessoas e nem sempre para melhor. Com essa ânsia de dominação e homogeneização, o movimento colonial continua existindo.

Como geógrafo e etnógrafo, você acha que é possível mudar esse panorama muitas vezes opressor das religiões cristãs? A mim, me interessa mostrar como as pessoas perderam a capacidade crítica de entender que elas são também oprimidas pela religião. Ao mesmo tempo que a opressão acontece, traços de uma cultura ancestral, de uma religiosidade ancestral, são apagados. E esses traços, em certa medida, podem ser libertadores. Jamais o cristianismo poderia permitir a coexistência com religiões de matriz africana e indígena, que têm uma dimensão mais holística. Mesmo com a opressão, com as religiosidades ancestrais tendo sido esquecidas, algo na nossa existência, ou em nosso corpo, consegue capturar o fio. E quando isso acontece, há uma visão mais libertadora de tudo o que está em volta.

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Falando em ancestralidade, Salvar o Fogo dialoga e evoca conceitos vindos do perspectivismo ameríndio, criado pelos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima. Em que medida o perspectivismo ameríndio é uma influência em sua obra? Sou geógrafo, mas fiz doutorado no campo dos estudos étnicos, li muito sobre antropologia durante esse período e certamente fui contaminado pelas ideias do Viveiros de Castro. Elas falam de uma maneira muito mais apropriada sobre os processos que nos trouxeram até aqui. Li quase a obra todo do Viveiros de Castro, sou um grande fã dele. Li bastante outros antropólogos também. Com isso, me tornei um admirador das etnologias e etnografias indígenas. São modos de ver o mundo e a vida que me fizeram compreender minha existência, o passado dos meus pais e avós. Todas essas teorias decoloniais são uma influência muito forte em meu pensamento. Elas rompem com a visão eurocêntrica e dão uma perspectiva diferente. Não é absolutamente nova porque os indígenas já faziam isso e já pensavam assim, mas é uma perspectiva que foca e entende o pensamento produzido pelos povos originários da América.

Viveiros de Castro fala que o que o perspectivismo ameríndio quebra o pensamento cartesiano. Enquanto René Descartes fala “penso, logo existo”; o perspectivismo diz “o outro pensa, logo existe”. Tem uma empatia nessa forma de encarar o mundo. Dá para perceber essa generosidade nos personagens dos seus livros, na forma como vivem, nas relações familiares. Essa foi mesmo sua intenção como um romancista etnógrafo? A antropologia me ensinou a manter um olhar muito atento para a vida das pessoas. O perspectivismo ameríndio é sim uma forma empática de ver o mundo. Mostra que a minha maneira de olhar e de perceber o mundo não é absoluta. Tem inúmeras formas de pensar, ver e compreender o mundo. Aprendi isso como pesquisador, trabalhando no Incra, e como estudante de antropologia. Depois, eu tentei imaginar a possibilidade de fazer isso com a literatura. E é possível fazer de uma maneira profunda porque a literatura tem consigo a possibilidade da alteridade, a não ser quando o leitor não se envolva com a história. Mas geralmente, ele se imagina no lugar e na vida daquelas pessoas. A leitura nunca é um atividade passiva. O livro se projeta e se completa na mente do leitor. É ele que consegue imaginar as personagens, consegue dar movimento à ação. Esse engajamento ajuda na assimilação de novas perspectivas de vida, novas maneiras de compreender o mundo. Ajuda a ver que o outro não é tão diferente assim. Independentemente de onde se esteja, há sentimentos que são universais, como o medo, o afeto, a paixão, a raiva. Ao mesmo tempo em que o leitor olha de uma perspectiva diferente, ele se sente conectado aos personagens de alguma forma porque eles também têm algo humano, imediatamente compreensível. 

Já há uma previsão para terminar a trilogia sobre a terra? O terceiro livro já está no forno? Eu não me dei um prazo, até porque eu acho que cada trabalho tem um tempo de amadurecimento. Eu já tenho acumulado muita coisa para o próximo trabalho. Mas ainda assim, eu preciso de tempo para amadurecer. Brinco dizendo que continuo a ser um etnógrafo, mesmo escrevendo literatura. As personagens surgem para mim e eu me comporto como aquele pesquisador que chega numa comunidade e passa três anos só observando para depois escrever um trabalho etnográfico. Primeiro, ele precisa observar, aprender sobre o modo de vida, aprender até um novo idioma. Só depois de estabelecer conexões sólidas com a comunidade, ele começa a  narrar sua etnografia. Eu faço tudo isso com as personagens, mas na minha imaginação, nas minhas pesquisas. E muitas vezes elas vão se apresentando melhor na medida em que eu escrevo. E aí eu percebo que não as conhecia tão bem assim. Esse é o barato de escrever, muitas vezes não se sabe para onde as personagens vão te levar.

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Como está a produção da série Torto Arado, da HBO Max? Você pode adiantar alguma coisa? Eu sei quase nada sobre isso e nem posso palpitar. Eu também não pergunto muito sobre a produção porque não acho oportuno. Tive apenas uma conversa informal com a sala de roteiro há mais de um ano. Gostei do fato de serem só mulheres trabalhando o texto. Achei muito interessante o processo de transformar o romance num roteiro para uma série. Trocamos ideias, mas não foi nada definitivo, só uma conversa mesmo. 

Mas você está ansioso para ver como que vai ficar seu livro na tela? Tem medo ou receio de alguma coisa? Tenho, pode ser que eu não goste. Mas é legal ter a obra em dois formatos. Quem quiser pode ler o livro ou ver a série. Tive a experiência de ver uma adaptação teatral feita pela Christiane Jatahy, chamada Depois do Silêncio. A montagem está circulando por vários países europeus. Eu fui ver a estreia e gostei muito da leitura da Cristiane, me surpreendi com a forma que ela levou aquela história aos palcos. Tem a visão dela como encenadora, mas mantém a integridade do romance. 

Uma das atrizes é da Chapada Diamantina e está em seu trabalho de estreia. Como foi que isso aconteceu? A peça tem um elenco ótimo, mas essa atriz, a Gal Pereira, foi garimpada pela Christiane lá na Chapada Diamantina, nas visitas que ela fez para conhecer e estudar o local que originou a história. Coincidentemente, assim como as protagonistas de Torto Arado, a Gal é filha de um curador de jarê, de uma comunidade quilombola chamada Remanso. A Christiane a conheceu e a levou para o Rio para participar dos testes e da preparação do elenco. Ela se saiu muito bem e entrou no espetáculo. Hoje a Gal é uma força da peça, uma presença marcante.

SALVAR O FOGO, de Itamar Vieira Junior (Todavia; 320 páginas; 76,90 reais e 49,90 reais em e-book)
SALVAR O FOGO, de Itamar Vieira Junior (Todavia; 320 páginas; 76,90 reais e 49,90 reais em e-book) (./Divulgação)
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