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‘Sou pessimista sobre um futuro sem racismo’, diz Mbembe

Em entrevista a VEJA, Achille Mbembe falou sobre filosofia africana, fragilidades da democracia contemporânea e construção de uma sociedade mais sustentável

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 8 Maio 2024, 12h37 - Publicado em 6 mar 2024, 07h00

Na tarde desta segunda-feira, 4, o púlpito de inspirações neocoloniais do salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo foi ocupado por um grupo majoritariamente negro. O público que encheu o auditório aguardava com entusiasmo o orador da noite, mas a euforia atingiu seu ápice com um ato simbólico — abertas desde o início da noite, as cortinas que emolduram o imponente quadro de Dom Pedro II — que nunca foi suficientemente contrário à escravidão no Brasil — foram fechadas para receber o historiador e filósofo Achille Mbembe

O discurso foi marcado pelo tom afrocentrado. Citando autores célebres da intelectualidade negra como W. E. B. Du Bois, George Padmore, Angela Davis e Aimé Césaire, o camaronês evocou conceitos cunhados por ele mesmo para inspirar a reconstrução da democracia onde ela já morreu e sua manutenção, onde anda frágil. 

Aos 66 anos, o filósofo visitou o Brasil para uma aula magna a convite da 9ª Mostra Internacional de Teatro. Ele é um dos pensadores mais importantes da atualidade, sendo autor dos livros Políticas da Inimizade, Necropolítica, Brutalismo e Crítica da Razão Negra. Entre os mais recentes também está The Earthly Comunity (Comunidade Terrestre), ainda não traduzidos para o português. 

Um dia antes de sua palestra, Mbembe concedeu entrevista a VEJA. Ele falou sobre racismo, a relação do Brasil com a África, as fragilidades da democracia contemporânea e a construção de uma sociedade mais sustentável. Leia a seguir. 

Esta é sua terceira vez aqui no Brasil em dois anos e uma delas foi bem próxima às eleições presidenciais. O senhor notou alguma diferença no país desde lá? Quando eu vim para São Paulo pela última vez, de fato foi antes das eleições. Muitos dos meus interlocutores estavam preocupados com a possibilidade de ter que enfrentar mais tempo da tentativa de (Jair) Bolsonaro de destruir a democracia brasileira. Desta vez, não sinto a mesma angústia. Há uma sensação de que a situação ainda é difícil e que será necessário uma liderança inteligente para consolidar o espaço democrático. 

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Agora, independentemente do governo, a democracia parece estar ameaçada em todo o mundo. De onde vem essa fragilidade? A democracia liberal do tipo que prevaleceu no período pós-II Guerra Mundial foi esvaziada pelo neoliberalismo. Entre 1945 e o final dos anos 1970, as democracias liberais eram compatíveis com o capitalismo, especialmente diante do que parecia ser a grande ameaça do comunismo. Já o neoliberalismo é fundamentalmente incompatível com os princípios fundamentais da democracia liberal — responsabilidade, representação, redistribuição, reconhecimento. Além disso, as democracias também estão comprometidas pela escalada tecnológica e pelas formas de governar que dão preferência às coisas em vez de às pessoas.

Como isso se relaciona com o conceito de brutalismo que você discute em um dos seus últimos livros? O conceito de brutalismo é uma tentativa de dar conta desse período caracterizado pela escalada tecnológica e pelo surgimento de modelos de governança que se baseiam no princípio da destruição — da terra e das pessoas, dos corpos, em particular daqueles que foram racializados. Essas forças estão aproximando monopólios capitalistas e computação em nuvem, transformando pessoas em commodities. Essa combinação caracteriza o brutalismo.

A democracia é possível hoje em dia? Quero dizer, o que é necessário para que ela prospere? Ela teria que ser reinventada para ter alguma relevância no futuro. Teria que ser uma forma de democracia que não se limita apenas aos membros de estados-nação específicos, mas que responda de forma dinâmica às demandas de redistribuição, reconhecimento e dignidade. Teria que ser uma democracia comprometida com as demandas tanto de cuidado quanto de reparação do dano, começando por um planeta que agora está envolvido em um processo de combustão. Seria uma democracia que inclui todas as formas de vida. Essa forma de democracia é o que devemos buscar. Essa é a condição prévia para a invenção da democracia.

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É possível derrotar o racismo? É difícil responder sim ou não a esta pergunta, porque o racismo e a violência transcendem os sistemas políticos e econômicos. Isso significa que essas forças podem coexistir com qualquer tipo de regime, seja capitalista, socialista ou comunista. Alguma vez testemunharemos um mundo sem racismo? Sou bastante pessimista ao responder a essa pergunta.

Pode explicar isso melhor? Me impressiona o ressurgimento do racismo em quase todos os lugares. O neoliberalismo caminha de mãos dadas com a proliferação do racismo, herdada de anos de escravidão e ideologias de supremacia branca. Agora, estamos testemunhando formas ainda mais insidiosas de racismo, que estão incorporadas às formas tecnológicas de nosso tempo, como razão algorítmica e inteligência artificial. Essas formas também têm a capacidade de mirar em não negros, fazendo com que populações marginalizadas sejam tratadas exatamente da mesma forma que nós negros fomos tratados historicamente.

Aqui, no Brasil, a necropolítica é muito bem representada por uma guerra eterna entre a polícia e as comunidades que vivem em nossas favelas, majoritariamente negras, independentemente da polaridade do governo. De onde vem a resistência em resolver esse problema? As sociedades que nasceram da escravidão sempre mantiveram formas de subsídio para manter esse sistema no longo prazo. O primeiro tipo consiste em estabelecer um regime de medo ou terror para obter a submissão dos que podem se rebelar. Por isso, pessoas consideradas negras dentro dessas formações sociais sempre foram forçadas a viver na sombra permanente da morte prematura. A polícia tem o poder de lembrá-los da possibilidade constante de perderem suas vidas, mesmo que de maneira arbitrária. O segundo é o que foi dado aos brancos pobres, que foram cooptados pelo sistema para saberem que são diferentes dos grupos mais desprezados. Ninguém quer ser negro, porque sabemos quais são as consequências em termos de perda de dignidade, oportunidade e exposição à morte prematura. O nome negro carrega uma ameaça de vida. Esse subsídio dado aos brancos pobres é um elemento muito importante na manutenção do sistema necropolítico, porque reforça o lugar marginal dos negros.

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NECROPOLÍTICA - Achille Mbembe: livro discute morte como ferramenta política
NECROPOLÍTICA – Achille Mbembe: livro discute morte como ferramenta política (N-1 Edições/Divulgação)

Nas últimas semanas, Lula tem criticado fortemente Benjamin Netanyahu e uma comparação recente com os nazistas criou uma ampla questão diplomática. Qual a sua opinião sobre isso? É uma discussão muito difícil, porque nós estamos distantes da cena de acontecimentos. Dito isso, comparar uma coisa com a outra não significa que ambas as coisas sejam equivalentes. A comparação é precisamente reconhecer a singularidade de cada um dos termos que estão sendo comparados. Não estou dizendo que qualquer coisa pode ser comparada a qualquer outra coisa, mas a guerra à comparação pode não nos ajudar a dar conta das características chave de nossos problemas. Existem limites da comparação, mas não acredito que as comparações devam ser proibidas.

Em relação à razão e à consciência negras, recentemente cresceu um movimento de afro-americanos indo morar em países africanos como uma forma de escapar do racismo. Como você vê isso? Por um lado, vivemos em um mundo no qual existem muito poucos lugares onde pessoas negras são bem-vindas. Sair do continente sempre tem um preço alto. O outro lado tem a ver com uma longa história de maus-tratos a pessoas de a ascendência africana, independentemente das suas nacionalidades. Seja nos EUA, no Brasil, no Caribe ou na Europa, eles sofrem pela falta de reconhecimento como membros da sociedade e pela retirada da sua dignidade. Isso explica por que, especialmente desde o século XVIII, pessoas negras se mobilizam para voltar para a África. Temos que lutar para garantir que nenhuma pessoa de ascendência africana seja estrangeira na África. 

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Como isso pode ser feito? Temos que abrir a possibilidade, em nossas constituições, para qualquer pessoa de origem africana que queira se mudar para o continente seja capaz de fazê-lo. Também temos que nos mover na direção de abrir o continente para si próprio, de maneira que os africanos possam se mover livremente dentro do continente, o que significaria uma abolição das fronteiras coloniais. Facilitar essa mobilidade encerra a longa era durante a qual os africanos foram forçados a se mover em correntes. Esse deveria ser o horizonte.

Parece que há muito espaço para o desalento, mas você recentemente escreveu um livro muito esperançoso sobre a civilização. Pode falar um pouco sobre isso? Em minha própria trajetória intelectual, me senti compelido a levar tão a sério quanto pude a tragédia de nossa história, com o objetivo de entender suas origens e suas consequências no presente. O livro ao qual você se refere é uma tentativa de buscar uma solução através das cosmogonias africanas, conversando não apenas com aqueles que vieram antes de nós, nossos ancestrais, mas também com aqueles que virão depois. A terra é um espaço de abertura para todos, um espaço de refúgio e hospitalidade para todas as formas de vida, é a utopia final.

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