As leveduras desempenham um papel fundamental na elaboração do vinho. São elas que consomem os açúcares do mosto, como é chamado o líquido extraído da prensagem das uvas, transformando-os em álcool. Mas elas também têm um papel fundamental nos aromas e sabores da bebida. Não à toa, há grandes produtoras de Champagne, na França, que têm suas próprias leveduras, responsáveis pela assinatura aromática e gustativa de seus rótulos. Agora, a vinícola gaúcha Manus Vinhas e Vinhos está identificando as leveduras autóctones, ou seja, nativas de seus vinhedos, e fazendo testes para entender como elas influenciam nos vinhos lá feitos. Trata-se de uma iniciativa de grande porte sem paralelo na viticultura nacional.
A identificação das leveduras locais é uma nova etapa no ambicioso projeto da Manus de mapear seus vinhedos e identificar cada pequena parcela de acordo com suas características de solo. A exemplo do que é feito na região da Borgonha, na França, foram feitas diversas escavações, as chamadas calicatas, para entender a composição do solo. “Nosso vinhedo virou um queijo suíço”, conta Gustavo Bertolini, sócio proprietário da Manus junto com o irmão Diego, e arquiteto de formação.
A iniciativa foi feita em parceria com a Embrapa Uva e Vinho. Um time de 17 pesquisadores sob o comando de Celito Guerra vem entendo as características da Serra do Sudeste, no Rio Grande do Sul. As formações geológicas graníticas muito antigas ajudam a criar uma composição única. Os resultados finais dessa pesquisa que teve início em 2020 serão divulgados oficialmente em breve, mas as descobertas mostram enorme potencial.
Foram identificados 16 solos graníticos de perfis diferentes, divididos em 30 parcelas. Entre as leveduras, mais de 50 variedades distintas foram descobertas. Dessas, cinco de maior interesse enológico estão sendo testadas nos vinhos das safras mais recentes. A enóloga Mônica Rossetti, responsável pela elaboração dos vinhos, têm feito 60 microvinificações, 2 em cada uma das 30 parcelas, para entender como a bebida se comporta. Aos poucos, uma vinoteca está sendo criada para que a equipe entenda qual perfil é o mais apropriado para o vinho que pretendem fazer.
Os testes incluem ainda variedades de uvas ainda pouco cultivadas no país, como a grega Assyrtiko, a georgiana Saperavi, as italianas Teroldego e Nebbiolo e a portuguesa Gouveio. O portfólio é composto pela linha Virgo, que reúne as expressões mais puras do terroir da Serra do Sudeste, Liberum, com experimentações mais livres, e Clássico, com os rótulos de alta gama.
Os primeiros vinhos elaborados com as leveduras autóctones chegam agora ao mercado. São o Pinot Noir e o Chardonnay a linha Virgo da safra 2024. Comparados com a safra anterior, de 2023, mostram a influência enorme das leveduras. O chardonnay é mais elegante e fresco, com um perfil de frutas tropicais mais discreto. E o Pinot Noir é mais “nervoso”, com acidez muito elevada e um perfil frutado, com notas de cereja, bem mais fresco. Outro rótulo, ainda não disponível, mostra o efeito na uva de origem portuguesa Alvarinho. A safra 2023 é mais clássica, elegante e mineral, enquanto a safra 2024 é muito floral, mais encorpada e com acidez equilibrada.
A mudança representa uma busca dos irmãos Bertolini por uma expressão local, menos dependente das referências internacionais. A Manus é o projeto pessoal de ambos, responsáveis pela Vinhedos da Quinta, vinícola que há anos produz uvas de qualidade para outros produtores. Por anos, atendeu a Chandon, mas passou a ampliar a oferta e atende hoje pequenos produtores artesanais da região. A Manus é voltada para seus rótulos de “boutique”, como o Pinot Noir da linha Virgo. A inspiração da Borgonha é clara, mas o resultado é um vinho de personalidade distinta. “Não queremos ser ‘covers’, queremos ser protagonistas“, diz Bertolini.