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Reality show acende a polêmica: crianças podem ser independentes tão cedo?

Fatores da vida em sociedade, como a segurança, pesam na decisão dos japoneses de darem asas à prole desde cedo

Por Camille Mello 20 ago 2022, 08h00

Uma menininha perambula sozinha entre as gôndolas de um supermercado enquanto seus atentos olhos percorrem os produtos buscando o que lhe foi pedido pela mãe. Ela tem apenas 2 anos e impressiona os mais velhos, que a observam cumprir com agilidade a missão de pegar, um a um, os itens nas prateleiras. E tem mais: crianças de até 4 anos também vão à feira, levam roupas à lavanderia e preparam refeições sem a ajuda dos pais. Essas são cenas de um bem-sucedido reality show japonês de três décadas, Crescidinhos, recém-lançado em formato de série pela Netflix, em que uma turma ultramirim é filmada realizando tarefas que, à primeira vista, soam impossíveis de ser executadas em tão tenra idade. Pois são todas situações verdadeiras (acompanhadas a distância pelos mais crescidos da equipe do programa), que vêm levantando um acalorado debate sobre um escaninho vital na criação dos filhos: até que ponto a criançada pode desfrutar tamanha independência?

Evidentemente, fatores da vida em sociedade, como a segurança, pesam na decisão dos japoneses de darem asas à prole desde cedo. As ruas de Tóquio estão repletas de gente miúda sozinha, carregando suas generosas mochilas rumo à escola. Observadas as diferenças, a questão central recai sobre o caldo cultural, sobretudo o do Ocidente, onde prevalece uma forte tendência dos adultos à superproteção. Muitos subestimam, segundo apontam relevantes estudos, a capacidade infantil de já se virar em alguns departamentos — e assim brecam oportunidades de voos em um momento crucial da existência humana. “Esse afã de proteger os filhos e evitar que passem por dificuldades e sofrimento freia seu desenvolvimento pleno”, alerta a neuropsicóloga Lívia de Freitas.

Substituindo visões mais antigas, que passavam ao largo das potencialidades da mente infantil, pesquisas recentes mostram que até mesmo bebês apresentam habilidades de memória, atenção e controle sobre suas ações, pedras fundamentais para um princípio de independência. O cérebro em seus primórdios é um caldeirão em ebulição — calcula-se que mais de 1 milhão de novas conexões neurais se estabeleçam a cada segundo durante os primeiros anos, quando se constitui o córtex pré-frontal, a região que comanda raciocínio e comportamento. “Na chamada primeira infância, até os 5 anos, a aquisição da autonomia se dá da forma mais acelerada possível, uma chance única para a evolução do indivíduo e do que ele será capaz no futuro”, enfatiza a pediatra Sandra Grisi, coordenadora do Centro de Desenvolvimento Infantil da USP.

VIVENDO E APRENDENDO - Em sua segunda jornada na maternidade, Monique Lima, 39 anos, reconhece que aprendeu lições com a primogênita, Manuela, 8, que agora aplica em Vicente, 4. “Deixei a superproteção de lado e os incentivo a se virarem”, diz ela -
VIVENDO E APRENDENDO – Em sua segunda jornada na maternidade, Monique Lima, 39 anos, reconhece que aprendeu lições com a primogênita, Manuela, 8, que agora aplica em Vicente, 4. “Deixei a superproteção de lado e os incentivo a se virarem”, diz ela – (./Arquivo pessoal)

É justamente essa janela de altos aprendizados que os adultos devem aproveitar para semear noções de responsabilidade e independência na prole. E não é preciso nem que as crianças saiam de casa para receber bons incentivos. Delegar tarefas simples mesmo no ambiente doméstico é o suficiente para dar o pontapé inicial nesse trabalhoso porém rico processo de impulsionar a iniciativa própria. “Há atividades que podem ser feitas por crianças de qualquer idade, mas, para que deem cabo delas, necessitam de um empurrão dos pais”, explica o neurologista Marco Antônio Arruda, especializado em infância e adolescência.

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Nesse trajeto para a formação de seres autônomos, a recomendação é implantar um conjunto de ações simples, começando por atribuir aos pequenos missões elementares, como guardar brinquedos e organizar o material escolar, além de exercitar seu poder de escolha, cultivando neles o hábito de palpitar sobre o que comem ou vestem. “Comecei a deixar o Vicente comer e trocar de roupa sozinho, um processo gradativo, trabalhoso, mas de ótimo resultado”, avalia a mãe, Monique Lima, satisfeita com o progresso do caçula, de 4 anos.

Um novo estudo da Universidade Harvard atesta que os benefícios de dar estímulos precoces à autonomia se desdobram por toda a vida, influenciando positivamente na saúde, no desempenho escolar e, mais adiante, até no lado profissional. “A criança ganha autoestima a cada função que realiza e sua base vai se sedimentando”, diz Ioana Yacalos, doutora em desenvolvimento humano. Mas atenção: os primeiros miúdos gritos de independência devem ser cercados de olhares vigilantes. “Do contrário, podem ter efeito oposto, gerando estresse e ansiedade”, explica a médica Maria Beatriz Linhares, professora de medicina da USP. Quando o reality japonês mostrou os pequeninos desbravadores desenrolando tarefas do dia a dia, as redes ecoaram a preocupação de pais e mães mundo afora, que diziam: “Isso é loucura”. Outra ala ponderou. “As crianças têm um bom poder de aprendizado e não são tão frágeis assim”, acredita Beatriz Silva, 22 anos, mãe do travesso Miguel, de 2, um crescidinho ao depositar a fralda na lata de lixo e dar suas colheradas sozinho. É só o começo.

Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803

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