Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Preferência dos funcionários pelo modelo híbrido impõe desafios a empresas

O expediente flexível parece ser a tendência no mundo corporativo, mas ele não se enquadra em certas categorias profissionais

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 jun 2022, 08h38 - Publicado em 10 jun 2022, 06h00

Em alguns anos, alguém certamente perguntará quais mudanças impostas pela pandemia moldaram o futuro da humanidade. Os mais céticos talvez digam que o uso contínuo de máscara apenas acrescentou um acessório à indumentária cotidiana. Outros analistas afirmarão que o comércio eletrônico e o ensino a distância ganharam adeptos, mas as lojas físicas e as aulas presenciais deverão coexistir ao lado de seus pares digitais, pouco diferenciando-se do que eram antes da Covid-19. Ao que tudo indica, nenhuma transformação será tão profunda quanto a possibilidade de trabalhar em qualquer lugar, e não apenas no escritório. Com o risco de contágio pelo vírus, empresas de quase todos os setores e países trocaram a labuta tradicional pelo home office. E, sim, funcionou, pelo menos enquanto era uma ameaça real colocar os pés na rua. Mas eis que a vacina eliminou a obrigatoriedade do distanciamento social e muitas companhias passaram a convocar seus funcionários para o retorno ao velho e consagrado modelo. Para surpresa de ninguém, a maioria deles não quer. Agora, uma indigesta frente de batalha opõe patrões e empregados.

arte Home Office

Um episódio recente teve como protagonista Elon Musk, o homem mais rico do mundo. Em e-mail enviado a seus 100 000 funcionários, Musk exigiu o retorno imediato às unidades da empresa: “Todos na Tesla são obrigados a passar, no mínimo, quarenta horas no escritório por semana. Se você não aparecer, vamos supor que renunciou”. No Twitter, fez troça com o tema, dizendo que quem não concordar pode “fingir que trabalha” em outro lugar. Não é um caso isolado. A Apple estipulou um rígido cronograma de retorno ao trabalho no escritório. Como resposta, um grupo chamado Apple Together produziu uma carta, assinada por mais de 3 000 funcionários, pedindo às chefias que adotem em definitivo o home office — ou abandonariam a empresa. “Parem de nos tratar como crianças que precisam saber quando e onde devem estar e qual lição de casa devem fazer”, escreveram.

SEM CONVERSA - O bilionário Elon Musk: por e-mail, exigiu o retorno de seus 100 000 empregados -
SEM CONVERSA – O bilionário Elon Musk: por e-mail, exigiu o retorno de seus 100 000 empregados – (Theo Wargo/WireImage/Getty Images)

O nível de insatisfação é alto no gigante criado por Steve Jobs. Segundo um estudo da rede social corporativa Blind, 56% dos funcionários da Apple estão ativamente procurando outros empregos. De fato, não é baixo o risco de ocorrer uma debandada se a empresa não ceder. A intransigência já levou à saída de Ian Goodfellow, que ocupava o cargo estratégico de diretor de machine learning da companhia. O que chama a atenção nos dois casos é que a resistência em aceitar a nova realidade vem de empresas reconhecidas pela capacidade extraordinária para inovar e que, portanto, deveriam estar mais abertas a mudanças de rumo. Surpreende também o fato de elas dominarem mais do que ninguém os novos recursos digitais, o que supostamente as beneficiaria na adoção do trabalho remoto.

A questão não é tão simples quanto parece. O trabalho híbrido e flexível — ou seja, o profissional vai ao escritório quando necessário e dá expediente em casa se for preciso — parece ser a tendência no mundo corporativo, mas ele não se enquadra em certas categorias profissionais. Enquanto robôs não assumirem definitivamente os bisturis, médicos cirurgiões precisam, afinal, estar ao lado de seus pacientes. A mesma lógica vale para operários que realizam trabalhos que nenhuma máquina é capaz de executar. Também é preciso dizer que o cenário econômico permite que os funcionários americanos se sintam encorajados a peitar padrões. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego é de 3,6%, uma das mais baixas da história. Se um cientista de dados deixa a Microsoft porque foi obrigado a ir ao escritório, é boa a chance de encontrar posição equivalente em outros gigantes da tecnologia. No Brasil, o quadro é diferente. São 11,3 milhões de desocupados e a luta pelas melhores vagas costuma ser acirrada. Portanto, não há muita margem de manobra para que o funcionário faça exigências sobre o local de trabalho para os seus superiores.

Continua após a publicidade
ESTOU FORA - Goodfellow, da Apple: pedido de demissão -
ESTOU FORA - Goodfellow, da Apple: pedido de demissão – (MIT Technology Review/.)

A preferência pelo modelo remoto, vale frisar, é esmagadora. Uma pesquisa feita pelo Grupo Adecco, especialista em recursos humanos, com 15 000 trabalhadores de diversos países, incluindo o Brasil, apontou que 53% preferem o modelo de flexibilização da jornada, e 82% se sentem tão ou mais produtivos em casa do que no escritório. “O ser humano é realmente eficaz em se adaptar”, disse a VEJA o antropólogo sul-­africano James Suzman, autor do livro Trabalho — Uma História de Como Utilizamos o Nosso Tempo da Idade da Pedra à Era dos Robôs, que se tornou referência no assunto. “Quebrar estruturas complexas é difícil, mas o primeiro passo é reconhecer que o modelo não funciona. E as pessoas estão fazendo as perguntas certas no momento.”

MODELO HÍBRIDO - Volta ao Google: a empresa determinou três dias no escritório e dois em casa -
MODELO HÍBRIDO - Volta ao Google: a empresa determinou três dias no escritório e dois em casa – (Scott Olson/Getty Images)

Por aqui, empresas de diferentes setores buscam alternativas para unir o melhor dos dois mundos. O Itaú Unibanco adotou três modelos: presencial, para os colaboradores cujas funções demandam presença no banco todos os dias; híbrido, para times que precisam trabalhar nos escritórios com frequência; e flexível, que prevê maior autonomia. “Acompanhamos a implantação para fazer ajustes”, diz Valéria Marretto, diretora de RH do Itaú. No Google, estabeleceu-se uma rotina de três dias no escritório e dois em casa. A regra é global, mas pode ser adaptada de acordo com as necessidades de cada funcionário, que escolhe se quer passar mais ou menos tempo na empresa. “Vemos o modelo híbrido como uma oportunidade de redesenhar a rotina”, diz Carol Priscilla, gerente de RH da big tech.

PREOCUPAÇÃO - No conforto do lar: temor de que a cultura da empresa se perca -
PREOCUPAÇÃO - No conforto do lar: temor de que a cultura da empresa se perca – (Movile/Divulgação)

Se a transformação se confirmar, ela exigirá até a reorganização das cidades. Em São Paulo, a taxa de vacância de imóveis corporativos de alto padrão chegou a 24,72% no último trimestre de 2021, um dos índices mais altos da história recente. A consultoria financeira PwC, por exemplo, devolveu um prédio de vinte andares que mantinha na capital paulista. Em seus novos — e menores — endereços, desenhou um projeto arquitetônico para valorizar os encontros presenciais. “Já havia uma vontade de mudança por parte dos funcionários”, afirma Marco Castro, sócio-presidente da PwC Brasil. “A gente preservava coisas sem sentido e quando veio a pandemia decidimos radicalizar.” Agora, o trabalho híbrido vale para todos os funcionários da unidade brasileira.

Nem todos estão ansiosos para abandonar o antigo modelo. Os questionamentos são válidos. Eles vão da perda de cultura da companhia à impossibilidade de trocas imediatas entre os funcionários, o famoso olho no olho. Na discussão sobre o futuro, diversos aspectos devem ser levados em conta: o tipo de atividade da companhia, sua cultura e, principalmente, seu grau de maturidade. O importante é olhar para a questão com a seriedade que merece. “Há muita ênfase no que chamamos de novo normal ou modelo híbrido, mas o que se observa é uma profunda mudança na maneira como as pessoas se relacionam”, afirma José Augusto Figueiredo, country head do Grupo Adecco no Brasil. “O desafio agora é descobrir como reter talentos sem contar com as fronteiras físicas do escritório.”

Experiências passadas ensinam que grandes transformações sempre despertam resistência. No Brasil, o décimo terceiro salário foi incorporado apenas nos anos 60 do século passado, e muitos analistas disseram que as empresas quebrariam. Claro, não quebraram. Os ventos da sociedade costumam ser irrefreáveis. E quem não se adaptar, de um lado e do outro, provavelmente perderá o curso da história.

Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.