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Como Filipe Grimaldi está ajudando a divulgar a arte popular do Brasil

Nas redes sociais. o letrista e artista visual divulga o trabalho de outros profissionais e mostra a rica diversidade da tipografia vernacular do país

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 mar 2024, 18h14 - Publicado em 1 mar 2024, 17h38

As paredes do estúdio do artista visual Filipe Grimaldi, na zona oeste de São Paulo, são, ao mesmo tempo, uma pequena galeria de seu trabalho e uma fonte de referências de “lettering” popular. Grandes placas de madeira mostram o Alfabeto Hueso, estilo peruano catalogado pelos profissionais do Carga Máxima, o Alfabeto Porteño do fileteador Gustavo Ferrari ou o Alfabeto Decorativo Amazônico, de Luís Jr. e Zé Augusto, todos interpretados pelo pincel de Grimaldi. Além do trabalho de pesquisa de letreiros brasileiros e latino-americanas, ele tem se dedicado a transmitir esse conhecimento como artista e professor. E vem usando sua fama nas redes sociais para divulgar o trabalho de outros colegas do Brasil e do mundo. Assim, vem fomentando um surpreendente interesse pela tipologia popular e pela arte que existe fora das galerias e museus.

“Existe uma valorização da cultura popular. Você vê pelo Instagram”, diz Grimaldi. O número de seguidores, um dos termômetros de popularidade nas redes, reforçam essa percepção. Sua página na rede é seguida por 817 mil pessoas. Poucos meses atrás, seus seguidores estavam na faixa dos 500 mil. O crescimento contínuo é fruto do carisma que mostra em “reacts”, os vídeos em que reage ao conteúdo publicado por outros artistas. Ele explica as técnicas e processos usados e dá o contexto histórico e social em que cada estilo se desenvolveu. É claro que não se trata de um fenômeno individual. Há um movimento maior que inclui vários outros profissionais das artes, mas também empresas, que passaram a contratar esses artistas para campanhas. De repente, a estética popular, dos cartazes de supermercado ao filete de caminhões, ficou “cool”.

Para entender como esse fenômeno vem se desenrolando, conversamos com Filipe Grimaldi em seu estúdio. Além de refletir sobre sua carreira e a situação atual do mercado de arte brasileiro, ele mostrou como grava seus vídeos e como produz sua arte.

Contrate um letrista

O sucesso de Grimaldi como influenciador é recente. Seus primeiros posts, inspirados em um modelo popularizado por Casimiro, foram feitos há pouco mais de um ano. Mas sua trajetória como artista e letrista é longeva. “Estou com 39 anos. Tenho uma caminhada já. Me formei em 2005 e já fiz muita coisa”, diz. Antes do surgimento dos cursos de Design, a melhor alternativa era a faculdade de Desenho Industrial. “Você podia escolher entre design gráfico e desenho de produto. Fui para o lado da identidade visual e logo vi que tinha um olhar apurado para as fontes e a tipologia”, conta. Além do trabalho analógico e de “mixed media”, ou mídia mista, que mescla digital e analógico, Grimaldi se especializou no Photoshop, que na época era a grande inovação. Na primeira década, trabalhou em agências de publicidade, mas resolveu dar uma guinada na carreira depois de um serviço traumático. “Um cliente pagou a gente, mas não gostou do trabalho. Praticamente disse que a gente podia jogar tudo no lixo. Aquilo foi uma ofensa moral para os artistas que participaram”.

Resolveu montar seu ateliê para se dedicar às letras, majoritariamente de forma analógica. “Aí começou meu intercâmbio com a tipografia“. Lá, passou a dar aulas. Trouxe os peruanos do Carga Máxima, que catalogaram a tipografia popular do país. Trouxe fileteadores portenhos, artistas que mantém o estilo argentino de pintura, tão popular que qualquer turista que viaja a Buenos Aires costuma voltar com plaquinhas de madeira pintados com as coloridas letras. E passou a fazer um trabalho de pesquisa das letras brasileiras. “A gente olhava para a gringa e via que tinha americano trabalhando e ensinando uma tradição de 100 anos. Aqui, não tinha nada mapeado. O Brasil é gigantesco, mas não havia nada catalogado”.

Nas paredes do ateliê, referências de alfabetos populares, como o portenho, acima, e o decorativo amazônico, abaixo -
Nas paredes do ateliê, referências de alfabetos populares, como o portenho, acima, e o decorativo amazônico, abaixo – (André Sollitto/VEJA)

Foi assim que descobriu os profissionais do Pará, ou os abridores de letra de Pernambuco, pintores letristas responsáveis por anunciar todo tipo de serviço, do cafezinho a consertos de roupa e amoladores. Vários foram dar aulas no ateliê de Grimaldi, e essa troca mostrou como a formação da tipografia vernacular brasileira foi feita de forma orgânica, sem tanta influência europeia. “Você vai pro Nordeste e eles têm uma estética própria. A letra amazônica é diferente, não tem um pingo de estrangeirismo”, conta. “Se você vai pra lá, vê que eles ainda pintam de dentro do barco. O trabalho é feito da mesma forma há muito tempo.”

Há um espaço amplo para pesquisa e catalogação de diferentes estilos tipográficos populares do país. Mas ainda é um processo lento, que envolve o contato direto com os artistas. Nesse processo, algumas tradições populares podem se perder, como os filetes de caminhão, um serviço que vem caindo em desuso e os artistas responsáveis estão chegando ao fim de suas carreiras, sem sucessores. “Um dia, lá no futuro, vão olhar para trás e ver que houve um tempo em que os caminhões eram pintados com filetes. Mas a tradição vai se perder. Com as letras, não”, afirma.

Esmero e manualidade

O trabalho que Grimaldi faz hoje nas redes é parte desse processo de jogar luz sobre técnicas e estilos, mas também sobre os profissionais que muitas vezes são pouco conhecidos. “Muita gente nem imaginava que os cartazes dos supermercados são feitos por artistas, e não por impressoras”, diz. Hoje, há uma variedade de cartazistas no Instagram que mostram o processo. Com canetas pôster de tamanhos variados, fazem a “blocagem” das letras, colocam preços e identificam a validade das promoções. A velocidade com que produzem também chama a atenção. E trata-se apenas de uma das áreas que passaram a ser mais conhecidas.

Seus vídeos começaram a se espalhar a partir da quinta postagem que fez. O algoritmo da rede social começou a entregar o conteúdo para mais gente, e assim o número de seguidores passou a aumentar rapidamente. Agora, ele vê seu papel no Instagram como parte de sua rotina. São três “reacts” por dia, logo cedo. Em um canto de seu estúdio, há o famoso ring light, o equipamento de iluminação usado pelos influenciadores. É lá que ele vê os vídeos e grava suas reações. Além de escolher alguns conteúdos que considera relevantes, recebe dezenas de postagens todos os dias, de artistas de todo o país.

O artista e letrista Filipe Grimaldi em seu estúdio, na zona oeste de São Paulo -
O artista e letrista Filipe Grimaldi em seu estúdio, na zona oeste de São Paulo – (André Sollitto/VEJA)

Com a popularidade que tem hoje, sabe que um post seu pode ajudar o artista. Segundo Grimaldi, muitos contam que ganharam tantos seguidores ou conseguiram fechar uma encomenda ou outra depois que apareceram em seu perfil. “A questão do influenciador é passageira. E isso traz uma responsabilidade muito grande, né?”, diz.

É claro que isso se reflete nas oportunidades de trabalho para o próprio Grimaldi. Nos últimos tempos, o letrista fez cartazes para shows, redes de supermercado, marcas de cannabis medicinal, lanchonetes, capas de CDs e letreiros para casas de espetáculos. “É uma parte muito legal dessa história de influenciador”. Hoje, com 20 anos de carreira, diz que pode escolher os trabalhos que quer fazer.

Fé na Tinta

Parte do sucesso de Grimaldi nas redes sociais está ligado aos bordões que criou, como o “Chora, Photoshop” ou “Esmero e manualidade“. Mas também ao tom otimista e encorajador que usa em seus vídeos. Além de elogiar o trabalho dos colegas artistas, explica as técnicas e processos usados. Se o post é sobre tipologia, por exemplo, faz comentários mais técnicos. Em outros, de áreas em que não atua de forma direta, reforça a necessidade do estudo no processo para dominar o aspecto artesanal do trabalho. Quem começa a segui-lo agora pode até maratonar o conteúdo, entrando em conto com uma variedade de artes. Isso pode estimular muita gente a seguir um caminho artístico.

“É claro que nos vídeos sou sempre positivo, digo que é preciso ter ‘fé na tinta‘ e estimulo as pessoas a continuar produzindo”, diz ele, “mas sou bem realista sobre a carreira de artista no Brasil”. Segundo ele, é possível seguir dois caminhos. “Tem o da galeria de arte contemporânea, em que você vai ser reconhecido aos 50 anos, sua arte vai parar em museus, vai ser comprado por bancos, mas você acaba num pedestal. E estamos falando de uma minoria”, reflete. O outro caminho é o da arte popular. “Você pode fazer a parede de um mercadinho, a arte de uma camiseta. Nem sempre vai ganhar em dinheiro, e muitas vezes vai fazer aquele trampo só pra sobreviver. Mas é uma posição mais afetiva. Há um reconhecimento mais pessoal”. Mas reforça que é uma vida muitas vezes difícil, de remuneração nem sempre adequada.

O processo de elaboração de um cartaz -
O processo de elaboração de um cartaz – (André Sollitto/VEJA)

Para aqueles que realmente querem se dedicar a uma carreira artística, Grimaldi compartilha um pouco de sua experiência. Além das aulas presenciais que oferece, tem um curso introdutório à pintura de letras na plataforma digital do Sesc, e recentemente lançou um curso de Lettering Popular Brasileiro na plataforma Domestika. “Sou professor de pintura de letra há oito anos. Acho que comecei os reacts por causa disso. A polaridade dos últimos tempos mostrou um lado de briga na internet, mas acho que dá para provar que ela também pode ser um espaço de ensino.”

Ao fim da conversa, Grimaldi topou fazer um cartaz para mostrar parte do seu processo de trabalho. Na folha em branco, colocada sobre um suporte de madeira, ele traça um esboço a lápis. Com um pincel de letrista, com cerdas mais compridas, faz a primeira camada em vermelho. Usa o dedo mindinho da mão direita como sustentação para traçar as letras. Em seguida, usa a cor verde para fazer um sombreado. Com o amarelo, pinta a reserva, um preenchimento das letras da metade para baixo, e o caquiado, pequenos traços que dão charme. O mesmo amarelo é usado para uma moldura. Fez tudo rapidamente, em silêncio, mas normalmente trabalha escuta música. Rap é o gênero que mais gosta, mas ouve ritmos do Norte, como o carimbó e o tecnobrega, ou funk. Assina e olha para o trabalho finalizado. Escreveu “sorte“. “Sempre fico pensando porque não faço direto na placa de madeira, porque depois posso vender”, ri. “Tem peças que vendo logo depois de terminar. Outras obras levam anos, mas sempre encontram um destino certo.”

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