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‘Born to Fashion’ reforça linha de séries LGBT que buscam furar a bolha

Programa nacional, do canal pago E!, vai selecionar uma modelo trans, seguindo os moldes de realities que oferecem tramas empáticas para além da competição

Por Tamara Nassif 14 ago 2020, 14h34

“É mulher que não acaba mais”, diz o maquiador André Veloso, ao que Laís Ribeiro, modelo brasileira e Angel da marca californiana Victoria Secret’s, responde: “Graças a Deus.” O diálogo de poucos segundos do primeiro episódio de Born To Fashion, do E!, diz muito sobre o novo reality show do canal pago, que vai revelar um novo talento das passarelas. Na disputa por estar entre as dez selecionadas da temporada inaugural, vinte candidatas se apresentam, uma a uma, aos jurados – Laís, Veloso e a estilista Lila Colzani, além da roteirista e cantora Alice Marcone. As moças fazem carão, desfilam, emocionam ao contar suas histórias de vida, agradecem e esperam que, nos poucos minutos de apresentação, tenham conseguido deixar uma boa primeira impressão. A batida e bem-sucedida fórmula usada à exaustão em realities de moda, da mesma linhagem de America’s Next Top Model e Project Runway, conta aqui com um diferencial: as competidoras são mulheres transgênero.

Lideradas por Laís Ribeiro e Alice Marcone – ela própria uma mulher trans –, as dez modelos finalistas vão morar em uma mesma casa e enfrentarão, diariamente, alguns dos percalços da glamourosa profissão. Ao final, a vencedora terá um ano de contrato assinado com uma grande agência de modelos do país, e estampará a capa de uma revista do segmento. O reality surfa na recente onda de programas destinados ao público LGBT, mas ganhou uma projeção inesperada em 2019, quando, ao ser aprovado pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), foi criticado pelo presidente Jair Bolsonaro. A represália não impediu a continuidade do projeto, que estreou nesta quinta-feira, 13.

Para além da fórmula do reality de competição, o programa oferece outros elementos que buscam encantar não só o nicho a que se destina, mas também um público do lado de fora da bolha. São elementos simples, mas que geralmente apelam para a sensibilidade do espectador e a humanização dos personagens, como também o faz programas como os populares Queer Eye e RuPaul’s Drag Race.

No caso de Born to Fashion, a ponte entre o nicho e o público mais amplo é Laís Ribeiro, que não só esbanja carisma, como entrega detalhes curiosos dos bastidores da vida de modelo. Do outro lado, Laís ainda se mostra uma aliada da pauta trans, uma linha tênue do dito “lugar de fala”, na qual ela desfila graciosa. “Muitas pessoas podem querer assistir ao Born To Fashion por causa da Laís, e são pessoas que não necessariamente assistiriam a um programa relacionado ao nicho LGBT”, diz a VEJA Alice Marcone.

Nos Estados Unidos, a fórmula é garantida — e reverbera em resultados de audiência também no Brasil. Como o programa de transformação Queer Eye, da Netflix, por exemplo. Composto por cinco homens gays, chamados de “Fab Five”, cada qual com uma área de especialidade, a atração se propõe a fazer uma transformação completa na vida de americanos comuns. As mudanças externas acompanham outras internas, quando histórias de vida dos personagens, muitas vezes héteros e distantes do mundo LGBT, se cruzam com tramas pessoais dos cinco apresentadores.

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O ‘Fab Five’ com uma das participantes transformadas (da esq. para a dir.: Tan France, Antoni Porowski, Karamo Brown, Jody Castellucci, Jonathan Van Ness, Bobby Berk) (Christopher Smith/Netflix)

Outra que domina a cena dos realities de cunho LGBT é a famosa competição de drag queens americana, RuPaul’s Drag Race. Lançado em 2009, o programa conquistou um público cativo ao longo de seus mais de dez anos no ar e doze badaladas temporadas. Para dialogar com o público de fora do recorte LGBT, celebridades convidadas integram a banca de jurados, como Lady Gaga, Nicki Minaj, Adam Levine e Christina Aguilera, entre outros. Os dramas pessoais, claro, são aqui também a base do programa. Abandono familiar, abusos sexuais e preconceito nas redes sociais são temas recorrentes entre os competidores, que levam os espectadores às lágrimas. Neste ano, o programa ainda assumiu um posicionamento mais político, ao convocar seu público a votar nas eleições presidenciais nos Estados Unidos — com o claro intuito de trocar de presidente.

O painel de jurados de ‘RuPaul’s Drag Race’, com o comediante Ross Mathews, Michelle Visage, RuPaul Charles, Carson Kressley e, como convidada especial, Christina Aguilera (VH1/Divulgação)

Abaixo, confira uma conversa entre Alice Marcone, roteirista de Born To Fashion, e a reportagem de VEJA:

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Qual o grande objetivo de Born to Fashion? O reality prevê reforçar a representatividades de pessoas trans dentro da moda, mas a preocupação maior é que comecemos a falar de inclusão no mercado de trabalho. Eu quero que essas meninas tenham oportunidades de emprego depois que esse reality acabar, e não só elas, mas todas as outras trans daqui. Nós vivemos em um Brasil cuja expectativa de vida para uma mulher trans é de 35 anos, enquanto a da população geral é de 72. Nós vivemos em um Brasil onde 90% das mulheres trans estão na prostituição, o que cria um estigma terrível. Essa exclusão já começa na família. São abundantes as histórias de pessoas que não têm apoio familiar, não conseguem completar os estudos, o que resulta nesse descolamento do mercado. Nós precisamos não só de representatividade imagética, de transformar o que é belo, mas de transformar a realidade das pessoas trans e falar de dinheiro, de sustento, de emprego.

E como é esse mercado da moda, em especial para pessoas LGBT? Acho que vou ser cancelada pela moda inteira agora (risos). Junto com o movimento antirracista de #BlackLivesMatter, sinto que a moda tem se movimentado mais para criar espaços para pessoas negras e LGBTs, até como resposta para consumidores que cobram posicionamentos. Querendo ou não, a moda é ainda um universo dentro da cultura LGBT, e muitas pessoas da sigla trabalham com ela – mas isso não necessariamente cria uma consciência mais aberta. O segmento está lotado de homens gays que, apesar de estarem dentro da sigla, não são menos transfóbicos do que quem não está. Eu mesma já sofri muitas transfobias na minha pequena carreira de modelo, de escutar aquele comentário horrível “quando você entrou nessa sala, a gente nem percebeu que você era trans”. No fundo, o mercado ainda precisa pensar, e muito, no que é padrão de beleza. Geralmente, para conseguir trabalhar, as mulheres trans precisam reproduzir a estética de uma mulher cis. Ter os traços finos, o corpo assim-assado. Por mais que se fale e se pense muito sobre inclusão dentro da moda, nós ainda estamos avançando a passos lentos sobre quais corpos trans e quais corpos negros vão ser incluídos.

Assistindo a outros realities de moda, como RuPaul’s Drag Race e America’s Next Top Model, o que se percebe é, sobretudo, um espírito de competitividade. Born to Fashion vai seguir esse caminho? Nós sempre tivemos uma preocupação em manter um certo nível de competitividade que fosse saudável não só para o programa – que, afinal, é de entretenimento –, mas também para as meninas, e que refletisse, sobretudo, o mercado de trabalho da moda. Eu trabalhei nele por pouco tempo e fui muito frustrada, porque é difícil, bem difícil. De todos os mercados nos quais trabalhei, o da moda é, de longe, o mais tóxico. Eu sinto que, se queremos preparar essas meninas para serem modelos, precisamos prepará-las para também lidar com as adversidades do meio. Isso foi um pensamento de roteiro, de construção de perfil psicológico desse elenco, no qual colocamos meninas que sabíamos que iriam entrar em conflito, mas sempre com o intuito de que elas aprendessem com ele e soubessem problematizá-lo. Como avisamos: “Vocês estão numa competição, mas nem por isso precisam passar por cima uma das outras.”

No programa, você assume um papel de educadora, de ensinar aos outros sobre o que é ser uma mulher trans. Como é isso? É cansativo, mas é um desgaste positivo. Uma das coisas que eu sempre falo é: o fato de eu ser didática é uma consequência de eu ser a única, ao menos nesses espaços de roteiro. Eu entro em uma sala que se propõe a discutir a transgeneridade e, por ser a pessoa trans ali, eu sou a única que tem de ser responsável por essa pauta, de explicá-la para todos os outros e dar conta de uma coisa que, no fundo, também me escapa. Eu sou uma trans, não a trans, e já ocupo um lugar de privilégio tão gigantesco frente ao da maior parte das trans do Brasil que às vezes até me pergunto: qual que é o meu real lugar de fala aqui? Eu me responsabilizo porque acredito na importância desse trabalho, mas não quero ser a única a fazer isso. Eu quero que as pessoas cis se responsabilizem por estudar gênero, que as brancas se responsabilizem por estudar consciência racial, que não seja só o oprimido ensinando ao opressor. Tem que ser um trabalho conjunto.

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