“Não sei o que está acontecendo com o povo em geral que usa a palavra ‘óculos’ com o artigo no singular. Há a possibilidade de que isso esteja correto? Fico muito incomodada com essa concordância que está se generalizando: ‘o óculos, meu óculos’. Grata.” (Maria José Colacioppo)
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Não, Maria José, isso não está correto. “Óculos” (do latim oculus) era um substantivo plural quando estreou no português, em princípios do século XVII, e assim se conserva até hoje na língua padrão. Já faz muito tempo, porém, que a discordância de número que você observou (“um óculos”) é popular no português brasileiro.
O fato de ser disseminada não a torna menos errada, claro. No entanto, quando um desvio normativo é tão comum, sempre vale a pena tentar compreender por que ele ocorre, a lógica alternativa que o comanda. Não se trata de “justificar” nada, mas de tentar compreender. Compreender é mais difícil – mas muito mais proveitoso, inclusive para quem só vê no desvio um erro a ser corrigido – do que simplesmente condenar.
(E antes que venham denunciar, como fizeram alguns leitores nos comentários do recente post sobre “obrigado/obrigada”, o germe do fim do mundo – ou da civilização ocidental, ou do português, ou no mínimo do Brasil – contido em tal postura, observo que a histeria é o vírus ebola da inteligência. Sim, nossa educação vai de mal a pior. Sim, nossa língua merece ser tratada com mais carinho por todos nós. Mas não, o apocalipse não vai começar com “um óculos”.)
“Óculos” é representante de um tipo de substantivo que os gramáticos classificam como pluralia tantum, expressão latina que significa “apenas plurais”. São palavras que levam o plural em sua formação, embora se refiram a coisas singulares – na verdade, pares simétricos. Além dos óculos, encaixam-se nessa categoria as calças, as cuecas, as tesouras…
A língua popular, especialmente a que se fala no Brasil, não gosta muito de pluralia tantum: afinal, se o objeto é um só, por que não singularizá-lo? A calça, a cueca e a tesoura, no singular, são formas que os falantes encontraram – todas já dicionarizadas e admitidas na língua culta – de driblá-lo.
Por que os óculos tiveram destino diferente? Provavelmente porque, enquanto ninguém imagina a peça de vestuário de um perneta ao ouvir falar em “uma calça”, nem a metade inútil de um instrumento cortante ao ler sobre “a tesoura”, “o óculo” sugeriria um monóculo, 50% do objeto referido. A solução foi abraçar despudoradamente a discordância numérica: “o óculos”.
Erro crasso, sem dúvida. Onde já se viu singularizar o plural? Bom, tudo indica ter sido exatamente o que se deu com o substantivo “pires”, que ninguém estranha, mas essa é outra história.
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