Desavenças não faltaram, nos últimos meses, entre o presidente Bolsonaro e o governador João Doria, mas na questão do tratamento à população brasileira com sangue africano reina um tácito consenso. Enquanto o governo do primeiro mira a cultura negra e faz sumir da parede do Salão Nobre do Palácio do Planalto o quadro Orixás, de Djanira, a polícia do segundo agride, com a truculência característica, um capoeirista de São Paulo, Valdenir Alves dos Santos, o Mestre Nenê. Um avança contra um símbolo, o outro vai às vias de fato. Um ataca a alma, o outro, o corpo. De maneira complementar, que até parece sincronizada, atingem o alvo por inteiro.
O sumiço das lindas orixás de Djanira foi detectado pelo jornalista Rubens Valente e publicado em reportagem de sua autoria na revista Piauí. Durante anos a obra, com seus 3,61 metros por 1,12 metro, reinou como único quadro nas paredes cobertas de espelhos do salão. A Secretaria-Geral da Presidência informou ao jornalista que a pintura foi retirada em dezembro de 2019, “em conjunto com outras obras”, mas não soube informar que “outras obras” seriam essas. O Salão Nobre tem sido palco de cerimônias evangélicas, no governo Bolsonaro, com a presença, entre outros, dos inevitáveis Silas Malafaia e R.R. Soares. Dada a notória aversão dos evangélicos às religiões de matriz africana, não é um despropósito supor que lhes seria desconfortável a companhia de Iansã, Nanã e Oxum, assim como ao presidente (católico que não vai a missas, mas não perde um culto) e à primeira-dama.
Mestre Nenê, de 45 anos, conversava numa roda de amigos perto de sua casa, na Rua Fidalga, bairro paulistano da Vila Madalena, no começo da noite da quarta-feira 19, quando saltaram de uma viatura policiais que os intimaram a pôr as mãos na cabeça. O capoeirista tinha agora no colo o filho de 5 anos, que brincava na rua e, assustado, correra para junto ao pai. “Como vou botar a mão na cabeça com o filho no colo?”, diria depois. Em vez de obedecer, tentou voltar para deixar o filho em casa. Os policias o alcançaram, armas na mão, deram-lhe uma gravata e o imobilizaram, ele ainda com o filho, até que lhe arrancassem o menino dos braços. Filme de uma testemunha mostra um policial com arma na mão em primeiro plano, e outros dois ao fundo, em torno do capoeirista, caído no chão. Ele grita, cada vez mais alto: “Meu filho!, meu filho!”, sem saber onde o menino tinha ido parar. Chega sua esposa e pergunta, em desespero: “O que está acontecendo aqui? Alguém me explica o que está acontecendo aqui?”. Na delegacia soube-se que Mestre Nenê era suspeito de um furto de celulares e notebooks. Só foi solto quatro horas depois, com a notícia de que o verdadeiro culpado fora localizado.
As orixás de Djanira curtem agora o ostracismo na reserva técnica do Palácio do Planalto. O destino é compatível com a ideologia de um governo que, para dirigir a Fundação Palmares, escolheu um inimigo do movimento negro. Curioso, segundo lembra o autor da reportagem da Piauí, é que Djanira (1914-1979) era católica fervorosa; nos últimos anos de vida, até ingressou na Ordem Terceira do Carmo. No Salão Nobre as orixás foram substituídas por outra obra da artista, Pescadores. Em São Paulo, Mestre Nenê, em acréscimo às escoriações em diferentes partes do corpo, curtia, nos dias seguintes, a ressaca da humilhação. “Meu filho está traumatizado, minha comunidade está traumatizada”, disse num vídeo, com o olhar baixo e uma voz que, por efeito do golpe no pescoço, lhe saía difícil. A comunidade a que se refere, chamada “do Mangue”, é um enclave no coração da Vila Madalena, entre as ruas Fidalga e Fradique Coutinho, resquício do tempo em que o bairro, hoje rico e boêmio, era habitado por gente pobre.
O episódio se soma às brutalidades que vêm caracterizando a polícia de João Doria. No registro por “desacato” lavrado na delegacia do bairro de Pinheiros contra Mestre Nenê, reportagem do portal G1 notou um suspeito pormenor: o acusado é descrito como “branco”. Ora, Mestre Nenê, não bastasse a cor da pele, inconfundivelmente escura, exibe vistosos dreadlocks, a cair-lhe para além dos ombros. Ajudaria nas estatísticas registrá-lo como branco? Filme gravado na rua por outra testemunha mostra, prestes a sair, a viatura em que fora embarcado o capoeirista. O autor do filme informa que a cena é resultado de “uma abordagem, como eles chamam… abordagem” — e conclui: “Muito preto na rua, vocês sabem — tem de ter abordagem”.
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Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702