Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o hoje advogado Jorge Delmanto Bouchabki, conhecido desde 1988 como Jorginho da Rua Cuba, quebrou o silêncio nesta sexta-feira após 27 anos sem falar com a imprensa — a última vez, em maio de 1991, foi graças a uma histórica reportagem de VEJA São Paulo.
O então estudante — Ginho para a família e Jorginho, apelido dado pela imprensa que cobriu o crime da Rua Cuba — foi acusado, depois inocentado por falta de provas, de matar os pais, Jorge e sua mulher, Maria Cecília. Três anos depois dos assassinatos, em texto assinado pela jornalista Mônica Bérgamo, a revista contava como estava a vida do aluno de Direito em Ribeirão Preto, então com 21 anos.
Dizia a matéria de 1991: “Por orientação de seu advogado, José Carlos Dias, e também por decisão própria, ele decidiu submergir (…) Para realizar esta reportagem, VEJA São Paulo acompanhou-o à distância em Ribeirão Preto. Só diante do fato consumado de que a revista dispunha de material jornalístico exclusivo suficiente para a publicação de um perfil, é que ele, autorizado pelo advogado, concordou em falar. Colocou duas condições: seus amigos não seriam identificados no texto e não posaria para fotografias”.
VEJA SP contou que seus 21 anos foram “completados sem festa” dias antes da publicação e mostrou que Jorge Bouchabki não escondia o rancor com os repórteres, que o apontavam como culpado pelo crime. “Quando os amigos perguntam qual seria a sua primeira atitude como ministro, costuma brincar. ‘Vou censurar a imprensa e fazer uma listinha de presos políticos, todos jornalistas’.” Ele sonhava ser escritor, advogado, vereador e até ministro.
Além das declarações de Jorginho, também são fascinantes as angústias da repórter e os detalhes de como ele vivia em Ribeirão Preto, para onde se mudou para estudar na Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto) e “para se livrar do assédio da imprensa”. Leia um trecho:
“Fez amigos com facilidade — mas anda principalmente com mulheres. ‘Ele desperta uma coisa maternal em nós’, diz uma delas. ‘Cuida da gente, e a gente dele. É uma coisa delicada, especial.’ Em Ribeirão, ninguém o chama de Jorginho, só de Jorge ou Ginho. Exceto os estudantes que chegam de São Paulo, poucos lembram do caso. Mas foi inevitável: aos poucos, sua história começou a ser conhecida, e Jorginho ganhou certa notoriedade. É difícil se aproximar dele sem um conjunto embaralhado de emoções. Curiosidade, medo, suspeita, pena, dúvida. Afinal: culpado ou inocente? Algoz ou vítima? Jorginho da Rua Cuba, o parricida? Ou Ginho, o colega de classe que quebra qualquer galho, é engraçado, atrapalhado e até um pouco azarado? (Seu livro de cabeceira é As Leis de Murphy, segundo o qual se algo tem que dar errado… dará) Ou o colega cuja voz, fina, anasalada e doce, como a de uma criança de 10 anos — e igual à de seu avô, Dante Delmanto —, empresta ao homem de 1,81 metro e 79 quilos uma ternura singular.”
No texto, o personagem afirma que polícia e imprensa “desmontaram e investigaram minha vida inteira e não acharam nada”, e pergunta: “E agora, quem vai remontar?”
Um dia meu irmão me acordou assustado. Foi quando eu descobri que chorava dormindo
PublicidadeJorge Bouchabki
Em vez de uma sequência de perguntas e respostas, a revista destacou os principais trechos da entrevista, “a primeira em que falou longe de seus advogados”. A seguir, todas as declarações publicadas:
“Nossa casa era alegre. Meu pai fazia questão de jantar 7 e meia em ponto. Reunia a família inteira, e você imagina o que era, né? Cada um contando o que aprontou durante o dia.
Meu pai nunca contou ponto sério das ameaças que recebia. Falava para minha mãe. Queria preservar os filhos.
Eu ia dar para a minha mãe, no Natal, um Walita Master Super, que faz suco. Mas o pacote ficou embrulhado.
Quando soube que eles morreram… acho que todo filho pensa em morrer junto, né? Eu pensei em morrer.
A família avisou que estavam desconfiando de mim. Pensei: tudo bem, eles têm direito, contanto que investiguem a verdade. Nunca imaginei que seria o único suspeito, que ia sobrar para mim.
A polícia e os jornais distorciam a minha imagem. Sentia vontade de armar uma banca na Praça da Sé e contar a verdade: ‘Ei, tá todo mundo louco’.
Eu espirrava aqui, diziam que eu dançava ali. Então passei seis meses sem colocar o pé na rua. Fiquei em casa, dormindo, comendo, lendo e vendo TV.
Um dia meu irmão me acordou assustado. Foi quando eu descobri que chorava dormindo.
Minha imagem é ruim, sei disso. O dia em que procurar um emprego, vão preferir pegar um desconhecido. Terei sempre essa cicatriz.
O pior momento foi quando depus no Deic. Me amassaram sobre o José Carlos Dias. Não imaginava o tamanho da falta de ética dos jornalistas.
Qualquer problema, eu tinha um pai. Só que nunca tive problema. Quando aconteceu, ele não estava. O José Carlos Dias foi pai nessa hora.
Acredito no socialismo. Não tem um canibalismo como no capitalismo, um querendo subir no outro. Num sistema assim não aconteceria o que me aconteceu, nunca.
O Gorbatchev é brilhante, é meu ídolo. Tenho outros: Leonardo da Vinci (um gênio); minha avó e meus irmãos (fortalezas); minha tia Peggy (uma santa); meus advogados José Carlos Dias (muito humano), Luís Francisco (um gênio) e o Antônio Carlos Penteado de Moraes (um charme). E tem os meus pais.
Acho que sei quem matou meus pais. Mas não vou acusar sem provas, como fizeram comigo.
O pesadelo está acabando. Falta só o finalzinho, o Tribunal de Justiça apreciar o caso. Estou otimista
Não acredito em Deus. Mas, se existir alguma coisa depois da morte, meus pais devem estar descansando em paz.”