José Antonio Dias Toffoli agora é ministro do STF. Agora e pelos próximos 29 anos se não desistir para fazer outra coisa. Concede uma entrevista na Folha de hoje a Valdo Cruz e Vera Magalhães. Para indagações pertinentes, respostas óbvias — nada muito além do arroz, feijão, bife e batas fritas. A maionese estragada está em duas respostas. Vamos ver?
FOLHA – Por falar em independência, como deve ser o processo de construção de uma decisão de um ministro do STF? Baseado estritamente no que diz a lei ou é possível uma interpretação à luz das circunstâncias históricas e do momento?
TOFFOLI – É evidente que a realidade social e o momento histórico se manifestam na visão do juiz. Se nós formos pegar um exemplo de fora do Brasil, da Suprema Corte dos Estados Unidos, sob a mesma Constituição, se entendeu que era legítima a escravidão e, depois, que ela não era legítima. A realidade social, a realidade da cultura do momento em que se vive integra a formação da consciência de um julgador.
Epa! Acho que não é bem assim, não. A Constituição original dos EUA não faz referência à escravidão a não ser para ressalvar que nem os EUA nem os estados-membros arcarão com indenização por emancipação dos escravos. A proibição da escravidão passou a contar na Carta de modo explícito depois: está no Artigo XIII das emendas que foram sendo acrescentadas ao texto original, a saber:
A R T I G O XIII
1. Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição por um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.
2. O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias.
Isso significa que o texto mudou, sim. Proibiu a escravidão. Não era o mesmo texto. Assim, a questão da escravidão não justifica que ora se aceite uma coisa, ora se a rejeite, com base “na realidade social”. ATENÇÃO, MINISTRO TÓFFOLI: MUDANDO A REALIDADE SOCIAL, O IDEAL É QUE SE PROCURE MUDAR A CONSTITUIÇÃO. ATÉ QUE ELA NÃO MUDE, É PRECISO SEGUIR A LEI. Vamos à segunda resposta.
FOLHA – Na hora de interpretar a Constituição, esses fatores devem ser levados em conta?
TOFFOLI – Para usar um exemplo bíblico, Jesus Cristo disse: “O sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado”. O que Jesus quis dizer com isso? Que a lei existe para o homem, não é o homem que existe para a lei. A lei é o parâmetro, mas ela leva em conta, ao ser aplicada, o homem, o ser, a vida.
Toffoli está se referindo a um passagem do Evangelho de São Marcos (2,27). Huuummm… Trata-se de Marcos narrando uma resposta que Cristo teria dado aos fariseus, que o acusavam e a seus seguidores de não guardarem o sábado, conforme exige a Lei Mosaica. E Cristo, por sua vez, estava citando Davi, num episódio em que se vira forçado a comer o pão dos sacerdotes… No verso seguinte de Marcos, temos: “Assim que o Filho do homem é Senhor também do sábado”.
Com a vênia máxima ao novo ministro, acho que nem a Constituição dos EUA nem a Bíblia o autorizam a optar pelo direito achado “no homem, no ser, na vida”, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé…
Das muitas vezes em que se usa “Filho do Homem” no Novo Testamento, ao menos 80 delas, como é o caso acima, referem-se ao próprio Cristo. No contexto do Evangelho de Marcos — e dos Evangelhos —, trata-se apenas de uma pinima com os fariseus, acusados por Cristo e pelos discípulos de fazer um uso hipócrita das leis (religiosas) — o termo “farisaísmo” acabou entrando para a língua com este sentido. Daria um bom debate, claro, mas assevero: CRISTO ERA UM SEGUIDOR DA LEI MOSAICA. Não estimulava a sua transgressão. O “Filho do homem” do verso seguinte é, claramente, o próprio Cristo. Convenham: todos os 11 do STF são filhos de Deus, mas ninguém é “o” filho de Deus. Se, na metáfora de Toffoli, o sábado entra no lugar da “Constituição”, então eu terei de lembrá-lo: ele é ministro para servir a Constituição, sim! Ou faz isso ou acaba se servindo dela.
Não gostei nem de uma resposta nem de outra. Nos dois casos, submete textos a estranhas torções para justificar essa história de que um juiz tem de levar em conta o contexto ou sei lá o quê. ATÉ QUE A CONSTITUIÇÃO NÃO MUDE, É A CONSTITUIÇÃO QUE VALE. Ou que garantia teremos do exercício do direito? Ah, sim, nenhum homem é uma simples máquina de julgar; tanto é assim, que os ministros têm divergências. Sei de tudo isso: mas todos eles têm de buscar a justificativa no texto constitucional, não fora dele. E sem torcê-lo. Esse negócio de “o homem, o ser, a vida” costuma variar muito, como sabe bem o ministro, de acordo com as minorias organizadas e influentes, não é?
Para os que crêem, “o” Filho de Deus já veio. Há os que acreditam que ainda virá. E há os que acham que nem veio nem virá. Em qualquer dos casos, “o” Filho não é Toffoli. Melhor decidir como simples homem mesmo. E a Constituição segue sendo a melhor bíblia.
Acho que Toffoli tem de ler melhor a Constituição Americana, a Bíblia e a lei que garante 30 dias de férias às domésticas. Tem 30 anos de estabilidade pela frente. É uma eternidade!