Por Laryssa Borges, na VEJA.com:
Na semana passada, sem alarde, a presidente Dilma Rousseff editou um decreto cujo objetivo declarado é “consolidar a participação social como método de governo”. O Decreto 8.243/2014 determina a implantação da Política Nacional de Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), prevendo a criação de “conselhos populares” formados por integrantes de movimentos sociais que poderão opinar sobre os rumos de órgãos e entidades do governo federal. Que uma mudança tão profunda no sistema administrativo e político do Brasil tenha sido implantada pelo Executivo com uma canetada é motivo de alarme — e o alarme de fato tocou no Congresso nos últimos dias. Para juristas ouvidos pelo site de VEJA, contudo, o texto presidencial não apenas usurpa atribuições do Congresso Nacional, como ainda ataca um dos pilares da democracia representativa, a igualdade (“um homem, um voto”), ao criar um acesso privilegiado ao governo para integrantes de movimentos sociais.
“Esse decreto diz respeito à participação popular no processo legislativo e administrativo, mas a Constituição, quando fala de participação popular, é expressa ao prever como método de soberania o voto direto e secreto. É o princípio do ‘um homem, um voto’. Mesmo os casos de referendo, plebiscito e projeto de iniciativa popular têm de passar pelo Congresso, que é, sem dúvida, a representação máxima da população na nossa ordem constitucional”, diz o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso.
“Sem dúvida isso é coisa bolivariana, com aparência de legalidade, mas inconstitucional. Hugo Chávez sempre lutou para governar por decreto. Nicolás Maduro, a mesma coisa. Isso está ocorrendo também na Bolívia e no Equador. É um movimento sul-americano esse tal constitucionalismo bolivariano, mas é algo que pugna pelo fortalecimento do Executivo, por uma ditadura e que prega a vontade dos detentores do poder. O problema desse constitucionalismo é que ele é um constitucionalismo que não é. Constitucionalismo pressupõe liberdade, Estado constitucional e vontade da lei, e não dos homens”, afirma Velloso.
Para o ex-ministro da Justiça Miguel Reale, o decreto é eleitoreiro: “Dilma ganha diálogo com os movimentos sociais e pode dizer ‘eu dei poder para vocês’”.
“É uma democracia pior que a Venezuela, uma balbúrdia, um caldeirão. É mais grave do que os governos bolivarianos da América do Sul, porque esse decreto reconhece que movimentos não institucionalizados têm o poder de estabelecer metas e interferências na administração pública. Qualquer um pode criar um organismo para ter interferência”, completa Reale. O jurista se refere ao fato de que o decreto, no inciso I do artigo 2o., traz uma definição de sociedade civil que compreende “os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados”.
Na avaliação do ministro Gilmar Mendes, do STF, a criação dos conselhos populares também abre espaço para dúvidas sobre a representatividade daqueles que serão responsáveis por discutir políticas públicas. “À medida em que essas pessoas vão ter acesso a órgãos de deliberação, surge a dúvida de como vão ser cooptados, como vão ser selecionados. Se falamos de movimentos sociais, o que é isso? Como a sociedade civil vai se organizar? O grande afetado em termos de legitimidade de imediato é o Congresso”, afirma. “Tudo que vem desse eixo de inspiração bolivariano não faz bem para a democracia.”
OAB
A Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) analisa a possibilidade de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar barrar a medida. Ao site de VEJA, o jurista Valmir Pontes Filho, que preside a comissão, afirmou que o decreto é “realmente preocupante” porque “há várias indicações de conflito com a Constituição”.
“As discussões no Congresso de derrubada do decreto são utilíssimas porque o decreto não é tão aprimorado do ponto de vista redacional. Ele é muito confuso e há várias indicações de conflito com a Constituição. Esse exame preocupa todos nós. É um decreto polêmico e realmente preocupante”, disse Pontes.
No Congresso, dez partidos pressionam para que seja colocada em votação a urgência de um decreto legislativo para anular o texto presidencial. A frente esbarra, entretanto, na resistência do presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que teme desagradar Dilma. Pré-candidato ao governo do Rio Grande do Norte, Alves não quer comprar briga com o Palácio do Planalto às vésperas de inaugurar o novo aeroporto de São Gonçalo do Amarante na segunda-feira – ao lado da presidente.