Autorias 1 – Quem escreveu o quê
O Google é uma ferramenta extraordinária. Mas é preciso tomar certos cuidados. Ele indexa tudo o que se escreve por aí — e só por isso é tão útil. Mas ele não distingue o certo do errado, o que continua a ser tarefa de quem pesquisa, do leitor. Ele nos dá acesso a informações preciosas, […]
O episódio Diogo Mainardi-Franklin Martins, envolvendo o vazamento de uma sentença que ainda nem existia — um furo, com efeito, histórico (leia as explicações do juiz) — levou os leitores a enviar para cá um texto muito famoso sobre a covardia das pessoas comuns diante da escalada autoritária. Se vocês procurarem no arquivo, escrevi, no dia 30 de junho do ano passado, literalmente o seguinte (segue em azul):
“(…) constrangedor é constatar o silêncio das oposições até agora. Em vez de a escalada contra a imprensa livre merecer palavras de protesto, o que vemos são salamaleques dirigidos ao lulismo, como se estivéssemos mesmo diante de um pacificador. Reparem: não passa dia sem que uma autoridade do governo se dedique à tarefa de criminalizar a opinião dos que não rezam segundo a cartilha do “petistamente correto”. Objetivamente, a quem favorece o silêncio?
Há um textinho famoso sobre o nazismo, que merece ser lembrado. Nove entre dez citadores o atribuem a autor indevido: Maiakóvski, Bertolt Brecht ou o brasileiro Eduardo Alves da Costa (que escreveu, com efeito, coisa bem parecida):
Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar.
Seu autor é o teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984). Ele teve uma trajetória curiosa. Chegou a flertar com o nazismo nos primeiros tempos. Quando já havia ficado claro quem era Hitler e o que queria, ainda ambicionou incutir-lhe um tanto de sensatez. Até que percebeu do que se tratava e migrou para a oposição aberta. Foi processado em 1938 e enviado para o campo de concentração de Dachau, onde permanece até o fim da guerra. Correto estava o Niemöller do texto acima, não o que sonhou com as mãos estendidas para o ditador facinoroso.
Certos setores da oposição estão fazendo de conta que a escalada petista contra a imprensa é notícia de uma guerra particular. Não é, não. Trata-se de mais uma batalha do PT contra as liberdades democráticas; trata-se de mais uma iniciativa para fazer com que o autoritarismo brote no seio da própria democracia, como já está se tornando comum no continente. Os oposicionistas deveriam levar em conta a história de Niemöller. Enquanto ainda há quem se arrisque a reclamar…
Voltando a abril de 2007
Não só setores da oposição flertam com o perigo. Também os há na imprensa. Cometeu-se uma ilegalidade? Vamos ver antes se gostamos ou não gostamos da pessoa que é alvo da truculência. Se a resposta for “não”, que se dane. Não é problema nosso. Eu também sou assim? Não sou, não. Dia desses, levei aqui um monte de pitos de leitores porque defendi o direito de José Dirceu pleitear a sua anistia. Sou contra ela. Mas o direito de reivindicar ele tem. Não posso ser acusado de ser simpático ao ex-ministro. Mas retomo o fio inicial.
Muita gente postou o texto de Niemöller atribuindo-o a Maiakovski ou a Bertolt Brecht, e eu excluí os comentários, o que irritou alguns leitores. Só queria impedir que o erro prosperasse. Vizinho desse engano é um outro. Leia este texto:
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de me quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!
A segunda estrofe é conhecidíssima e muito citada. O nome do poema é No caminho, com Maiakovski, e ele não é do poeta russo, mas do fluminense Eduardo Alves da Costa, autor de livro homônimo. Chegaram comentários aos montes: “Como disse Maiakovski, na primeira noite, eles roubam uma flor…” A confusão é compreensível: parece-me evidente que o texto de Costa, que cita o nome de Maiakovski, segue as pegadas do de Niemöller. Aí a confusão de instalou.
Mesmo nos tempos pré-internet, a questão da autoria era capítulo complexo. A gente aprende no colégio — ou aprendia — que a frase “Viver é muito perigoso” é de Riobaldo, a jagunço com pinta de Spinoza de Guimarães Rosa. O ministro Franklin Martins adora citar a frase. Só espero que ele não se refira a perigos que os outros correm. Mas adiante. A sacada é de Virgínia Woolf, que escreveu isso pelo menos 31 anos antes de ir parar na boca da personagem de Grande Sertão Veredas (1956). Está aqui, ó, em Mrs. Dalloway, que é de 1925:
Ainda sobre autorias, leia o texto acima.