Jair Bolsonaro não estaria onde está se não tivesse qualidades. A principal delas parece ser sua notável capacidade de se conectar com um vasto setor popular exausto com a corrupção e a insegurança em casa e nas ruas. O candidato do PSL também tem defeitos, como atesta, inclusive, seu estratosférico índice de rejeição, quesito em que tem a companhia do petista Fernando Haddad. Ocorre que alguns desses defeitos não produzem apenas desagrado em parte do eleitorado. São uma ameaça de retrocesso político e social, e lançam uma enorme dúvida sobre o aspecto econômico.
Algumas das principais promessas de campanha responsáveis por alavancar o deputado nas pesquisas estão na área da segurança — assunto do qual ele, como deputado de sete mandatos, tratou muito, mas muito lateralmente. Suas promessas incluem a revogação do Estatuto do Desarmamento e a redução da maioridade penal — medidas que exigem mudanças na lei e na Constituição Federal. Se eleito, Bolsonaro precisará de uma base de apoio de 308 votos na Câmara e 49 no Senado para fazer mudanças constitucionais. Reunir todos esses votos requer uma capacidade de articulação que o deputado jamais demonstrou ter. Ao contrário: seu despreparo para os mais relevantes assuntos nacionais bem como seu desempenho parlamentar medíocre são sinais alarmantes.
O mero uso de agressões verbais contra minorias cria um quadro social em que o ataque físico a elas passa a ser progressivamente tolerado. É um impacto sobre o caldo social.
Matias Spektor, professor de relações internacionais da FGV
Piora a situação de Bolsonaro a grande probabilidade de que o novo Congresso se notabilize por características pouco favoráveis a um presidente com seu perfil. Por causa do desgaste de imagem sofrido na Lava-Jato por partidos como o PT, o PSDB e o MDB, as siglas majoritárias devem ter suas bancadas diminuídas, enquanto os partidos menores se fortalecerão. Isso significa que, para compor sua base, Bolsonaro terá de atrair um número maior de líderes, o que, no vocabulário de Brasília, significa sujeitar-se à voracidade fisiológica dos partidos — coisa que Bolsonaro diz que jamais faria (se eleito, o presidenciável terá a primeira chance de testar essa convicção, dado que acaba de receber o apoio da bancada ruralista, notória pela avidez). “Ele acredita que poderá se comunicar diretamente com o eleitor e constranger o Legislativo a votar de acordo com sua gestão”, diz o cientista político Carlos Pereira, da FGV. “O método pode surtir efeito no curto prazo, mas esgarça o tecido legislativo e cria o risco de provocar perigosa animosidade com o Congresso, além de forte frustração da sociedade.”
No plano econômico, um eventual governo Bolsonaro guarda contornos de caixa-preta. A agenda ultraliberal de Paulo Guedes, indicado pelo presidenciável como seu ministro da Fazenda em caso de vitória, foi apresentada na forma de um processo radical de privatizações, venda de imóveis da União e concessões de infraestrutura. Mas inclui medidas como a unificação da carga tributária e o fim de subsídios a setores específicos, cuja viabilização depende do sucesso da proposta de Guedes de desvincular os recursos do Orçamento — que, por sua vez, depende, novamente, da concordância de dois terços do Congresso.
Além das propostas em si, é altamente duvidoso que Bolsonaro, que construiu uma carreira política como estatista e corporativista, votando por doze anos sempre junto com a bancada do PT em temas relacionados a estatais e corporações, tenha subitamente se tornado um ultraliberal ao estilo Guedes. Tanto que, nos últimos dias, Bolsonaro já excluiu da lista de privatizações as estatais “estratégicas” — ou seja, todas as relevantes, como Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica e Eletrobras. Isso quebra a espinha dorsal da proposta de Guedes e reforça a ideia de que Bolsonaro, na realidade, não se converteu ao credo liberal, como alguns ingenuamente vêm acreditando. Ou tentando acreditar.
No campo das convicções democráticas, Bolsonaro até hoje aproveitou todas as oportunidades de espalhar a semente do autoritarismo, e para isso não precisou nem ser instigado por adversários. Da exaltação pública de um torturador, notório e catalogado, à relativização da gravidade de assassinatos cometidos na ditadura, como no caso do jornalista Vladimir Herzog (“Suicídio acontece”), tudo brotou espontaneamente da boca do deputado. Para piorar, ele é pródigo em declarações na mesma linha de seu vice, o general Hamilton Mourão, cujo partido, o PRTB, recentemente abrigou ao menos três generais declaradamente intervencionistas. “É um dos fenômenos duradouros que resultam da campanha do Bolsonaro. Não é que um golpe esteja sendo preparado, mas voltamos à situação anterior ao regime militar, entre 1945 e 1964, em que ninhos conspiradores discutiam e faziam política o tempo todo nos quartéis”, diz o sociólogo Demétrio Magnoli. Eis um retrocesso e tanto.
Cercar-se de indivíduos de comportamento antidemocrático em um momento em que as instituições estão desacreditadas equivale a jogar pólvora na fogueira, para usar uma metáfora bélica ao gosto do capitão. “Isso ajuda a normalizar comportamentos que põem em xeque o ordenamento constitucional do país”, diz o professor de relações internacionais da FGV Matias Spektor. Exemplo recente disso pôde ser visto na greve dos caminhoneiros, em que uma parcela considerável de motoristas defendeu uma intervenção militar como a melhor solução.
Da mesma forma, a maior ameaça que poderia pairar sobre certas populações é a influência que emanaria de um Bolsonaro no poder — e não suas eventuais atitudes como presidente. “O mero uso de agressões verbais contra minorias cria um quadro social em que o ataque físico a elas passa a ser progressivamente tolerado”, diz Spektor. Mesmo que um eventual governo não tente retirar direitos civis desses segmentos, o reflexo que a autoridade do presidente pode ter sobre eles é direto e negativo. “É um impacto sobre o caldo social. Coisas que não temos coragem de dizer em público, mesmo quando somos preconceituosos, passam a poder ser ditas em voz alta”, completa Spektor. Donald Trump, nos Estados Unidos, oferece um paralelo. O presidente americano elegeu-se em novembro de 2016 com um discurso repleto de ataques diretos a grupos identitários. Sete meses depois, o site BuzzFeed levantou ao menos cinquenta incidentes em que crianças brancas usaram frases de Trump para ofender colegas negros, latinos, muçulmanos, asiáticos e judeus. Entre os casos estava o de uma garota do último ano do ensino fundamental em San Antonio, Texas, que disse a um filipino da mesma idade que ele seria deportado devido à eleição do presidente. Em Brea, na Califórnia, um garoto disse a um colega negro: “Agora que o Trump ganhou, você terá de voltar para a África, que é o lugar ao qual você pertence”.
Segundo Magnoli, a campanha de Bolsonaro já normalizou fenômenos que seriam considerados desviantes anteriormente. Ele cita como exemplo os ataques contra venezuelanos e as recentes tentativas de setores da sociedade de proibir exposições de arte. “São comportamentos violentos e preconceituosos que passaram a ser aceitáveis.” Jair Bolsonaro é, em vários aspectos, uma caixa-preta — e, naquilo que é visível, sinaliza um retrocesso doloroso. Resta esperar que, a exemplo do que ocorre nos aviões, seus segredos não sejam revelados apenas em caso de tragédia.
Publicado em VEJA de 10 de outubro de 2018, edição nº 2603