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Flavia Faugeres: “A BRF foi o maior fracasso da minha vida”

Uma das maiores executivas do Brasil fala abertamente sobre erros, escolhas difíceis por ser mulher e um novo projeto de educação sócio-emocional

Por Josette Goulart Atualizado em 27 mar 2022, 12h13 - Publicado em 27 mar 2022, 10h31
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  • Flavia Faugeres foi uma das maiores executivas do país, agora é empreendedora, e caminha contra o vento, sem lenço e sem documento. E ela vai. E por que não? Pego carona nas frases da canção que Flavia cantou para encerrar este bate-papo de domingo para  dizer que nas próximas linhas você vai ler uma história que poucos têm coragem de contar: a própria história profissional do ponto de vista também dos erros. “Foi o maior fracasso da minha vida”, disse ela sem titubear sobre o período em que foi presidente da BRF no Brasil. E admite: “eu não li o cenário”. Flavia queria mudar a alimentação do brasileiro, a empresa queria exportar frango a um custo baixo.

    Mas a carreira de 30 anos como executiva de estratégia guarda muito sucesso. Foi ela quem levou o Zeca Pagodinho de volta para a Ambev, em dos twists carpados mais espetaculares da história da propaganda. Foi ela que, junto com Bernardo Hees, mudou a marca Burger King nos Estados Unidos, mandando o machista do King tirar férias e tornando o relançamento da empresa em um dos casos de sucesso do mundo dos negócios. Estratégia que a levou a ser considerada como uma das mulheres da publicidade a ser observada por uma revista de prestígio americana. Flavia hoje é daquelas poucas pessoas que passa a mão no telefone e fala com Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sucupira, o trio da 3G que fizeram parte de 14 anos de sua carreira. 

    Desde que deixou a BRF, a executiva foi se dedicar a um novo caminho. A do empreendedorismo. Ela está agora à frente de uma startup de psicologia e educação que ensina às pessoas técnicas sócio-emocionais por meio de ferramentas de mentoria, aprendizado de comportamento automático e autoconhecimento. Ideias como tratar a diversidade como um processo de inclusão e como ensinar as pessoas a ter resiliência e empatia da mesma forma que escovam os dentes já fizeram a Learn to Fly voar. Cuidar da saúde mental por meio da educação ainda é um tema muito vanguarda e boa parte das empresas não está preparada. Mas a startup criada por Flavia e Cecília Ivanisk mal começou e tem clientes como Ambev, Cosan, Kraft Heinz, Raízen, Quinto Andar. Mais ainda, já está em projetos sociais de diferentes fundações e ONGs importantes. Mas o seu sonho mesmo é chegar ao grande público. Afinal, nas empresas em que esteve, Flávia estudou como ninguém o grande público. 

    Do alto dos seus 50 anos, Flavia é uma filha da ditadura e hoje se revolta por estar deixando um país pior para seus filhos. Por isso, tem também o propósito junto com a Learn to Fly de ajudar os jovens. Este papo está imperdível e é a primeira vez que Flávia fala tão abertamente da sua vida profissional para um veículo da imprensa. Na edição, escolhi começar por uma pergunta tão diretamente focada na questão de ser mulher porque este foi um tema que dominou a conversa. O que é por si só muito curioso, já que a executiva é conhecida por ser altamente destemida, dura e sempre esteve em pé de igualdade com os executivos que encontrou pelo caminho. Mas ela, por exemplo, deixou um dos maiores cargos na gigante Inbev porque era mãe. Ela parou de trabalhar? Não, ela só não queria um cargo global que a deixaria 20 dias por mês longe dos seus filhos. Vem ler esta história.

    Você chegou ao topo quando o mundo executivo ainda era completamente dominado pelos homens. Como foi ser mulher na sua trajetória? Minha liderança é muito diferente da dos homens, sempre foi. E ao mesmo tempo eu sempre entrei no túnel dos homens. Eu não deixo nenhum homem me cortar. Isso não existe. Eu falo o que eu acho, eu não tenho medo. Em algum momento até me perguntei se eu não precisei me masculinizar. Mas, na verdade, eu sou essa pessoa. Uma vez eu cheguei para fazer um trabalho e um executivo chegou e falou assim: “Meu Deus. Ainda bem que você chegou porque a sala está cheia de mulheres”. E eu disse, mas fulano, eu também sou mulher. E ele respondeu: “Não, você não conta”. Porque eu tinha mesma linguagem dos homens. Eles quase me classificavam como não mulher quando na verdade, eu sempre fui muito mulher.

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    O que é uma forma de machismo. Te aceitar porque você é meio homem. É isso. Você não é mulher. Porque se não vou ter que considerar que você é uma mulher forte, então você não é mulher. 

    Você foi a primeira mulher trainee da Souza Cruz. A primeira mulher trainee do Citibank. Trabalhou na Unilever por 7 anos. Como foi a chegada na Ambev?  Quando a Ambev veio atrás de mim, era por volta do ano 2000, a empresa estava no auge da fusão da Brahma com Antarctica. E eles tinham uma fama de comer criancinha. Você lembra disso? E aí eles ficaram atrás de mim por 8 meses, até que uma hora eu falei “eu vou, vou experimentar”. Eu fiz seis entrevistas, com todos os principais executivos. E eu já fui para ser head da área de inteligência de mercado. Eu tinha uma página em branco. Eu acredito que fui uma das poucas mulheres que entrou já como head e sócia. Mas eu já avisei que eu ia ficar grávida. E eu entrei. Do meu jeito perua. Eu lembro que eles brincavam comigo e eu dizia: eu sou perua mesmo. Foram anos incríveis para mim, de um crescimento exponencial. Porque foi ali que eu me assumi como eu sou. Eu encontrei um espaço ali. E talvez eu não tivesse achado esse espaço em outras empresas porque elas esperavam uma postura mais delicada das mulheres. Eu nunca pensei muito a respeito, mas o fato é que durante os 7 anos que eu fiquei lá, eu fui feliz. E foi ali que eu tive meus dois filhos.

    Mas como foi ser mãe na Ambev, com toda a fama deles de que comiam criancinhas? Eu só fui ter filho com 33 anos porque eu jurava que eles iam fazer junto com o parto uma lobotomia e acabar com a minha autoestima. Estava muito ligada na questão da inteligência do profissional, que eu acho que é um problema de muitas mulheres ainda hoje. Elas têm muito medo. Abrir os outros papéis eram muito difíceis, porque eu tinha medo que um papel fosse destruir outro papel. E na verdade, eu vou te falar uma coisa que eu falo para todas as mulheres, eu fiquei muito melhor.  Eu voltei mais objetiva, porque eu não tinha tempo. E eu tinha um filho para amamentar. Ao mesmo tempo, eu voltei com 3 meses de licença porque a empresa estava na guerra contra a Schin. E foi incrível, porque eu liderei a guerra contra Schin. Eu que trouxe o Zeca Pagodinho de volta. Eu chegava na empresa às 8 horas, saía às 6h. E eu amamentava e cuidava do meu filho. E aí aconteceu uma coisa super louca, porque a Ambev virou Inbev e eu era uma das poucas que tinha experiência internacional. Já tinha morado fora, falava várias línguas. E então eu fui promovida para ser a vice-presidente de inteligência de mercado global. E eu não queria. Porque eu tinha acabado de ter um filho. Eu tinha um filho de 1 ano. Então o que eles fizeram? Eles me deram esse cargo, mas me deixaram ficar no Brasil. E aí foi uma das piores decisões que eu tomei na minha vida. Durante um ano e meio, eu passava uma semana lá e uma semana aqui. Eu chorava porque quando eu estava lá, meu filho tinha febre. E numa das vindas eu acabei ficando grávida da minha outra filha. Eu então saí da Inbev. Foi um dos lugares que eu fui mais feliz na minha vida, mas é o seguinte, eu queria ser uma mãe. Eu tinha lido que eu tinha que estar próxima das crianças até os 7 anos, então eu não podia ficar 20 dias por mês fora. Era o cargo dos meus sonhos, porque é de planejamento estratégico, de inteligência de mercado global. É a coisa que eu mais gosto de fazer. Eu estava no lugar. Só que eu não ia fazer o que eu tinha que fazer também como mãe, então eu saí. E aí eu fiquei 3 meses em casa. 

    E foi isso? Largou tudo para ser mãe? Não. O Nizan me chamou e eu virei sócia na N Ideias. Durante aquele ano, eu trabalhava e chorava todos os dias e as pessoas me perguntavam: “você está feliz?” Eu falava: “não, eu tô muito triste, mas eu fiz a coisa certa.” 

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    Você ainda acha que foi a coisa certa? Você faria de novo? Eu tenho certeza. Eu estava pensando ontem, meus filhos têm 18 e 16 e são jovens maravilhosos. Cheios de opinião. E eu fiz a coisa certa porque não é que eu saí para parar de trabalhar. Eu não parei de trabalhar, eu saí e fui trabalhar com Nizan. E depois eu fui montar minha consultoria. Na cabeça dos ambevianos, provavelmente, eu saí para ficar em casa. Não, eu só não queria ser global. Então eu continuava trabalhando, mas eu tomava café na minha casa, eu jantava na minha casa.

    Mas a Inbev não te ofereceu para ficar no Brasil?Eu implorei para ficar no Brasil. Mas eu era a VP global. Anos depois, o Marcel (Telles, um dos 3G), num jantar quando eu já estava no Burger King, me perguntou: por que as mulheres saem da Ambev? E eu respondi a ele que é porque em alguns momentos de decisões importantes, onde a gente precisa de um pouquinho de flexibilidade, eles não eram capazes de ler a necessidade. Porque foi isso. Foi só isso. Eu amava aquele lugar. E não é só a minha história. É a história de muitas mulheres e de muitas mulheres em muitos lugares. Então eu sei que eu fiz a coisa certa. Eu não estou contando sobre meu passado profissional, né? Estou contando minha vida de mulher.

    Mas elas são a mesma história. Verdade. Bom, só sei que eu estava lá, fazendo consultoria (voltando à linha do tempo da vida profissional) e o 3G compra o Burger King. E eles me chamaram, mas eu disse que iria como consultora. Eu fiquei um ano indo pra Miami, ida e volta toda a semana. Domingo eu ia e voltava na quinta. E aí no meio dessa história, o meu filho mais velho já tinha 8. A mais nova já tinha 6. E eu pensei: já dá para eu voltar e encarar de novo esse mundo corporativo. Mas eu tenho um marido. Há 26 anos. E ele virou para mim e disse que iria comigo por dois anos, que seria um tempo do MBA, mas que ele tinha que voltar e trabalhar. E eu voltei para o Bernardo (Hees, que era CEO do Burger King) e recusei a oferta. Mas quando ele soube o motivo, falou com o Beto (Sucupira, outro 3G) e com o Marcel e eles toparam que eu ficasse por 3 anos. E fui e foi uma virada histórica no Burger King. Eu era o braço direito do Bernardo na questão da marca. A marca estava morta. Era o tal do King, que era um machista. E eu disse: “o King vai ficar de férias dois anos. Chega”. O Burger King não tinha salada. Só tinha aqueles hambúrgueres enormes. Não tinha sorvete. E aí foi incrível porque eles me deram toda a liberdade de novo. E a gente tinha que dar um choque, homeopatia não dava porque o doente estava morrendo. Quando eu entrei na empresa, uma ação valia 3, quando eu saí, vendi a 65. Ganhei todos os múltiplos. E quando chegou ao final dos três anos, eles pediram para eu ficar, mas eu tinha um compromisso com meu marido e fui embora. E é isso que para eles é tão difícil, porque eu tenho uma intensidade no que eu amo. Hoje eles sabem lidar bem comigo. E também nos últimos seis meses de Burger King, a minha mãe ficou doente e teve câncer. Aquelas alturas eu ia fazer 43 anos e já desde os 40 eu pensava na utilidade do meu trabalho, o que faria na segunda metade da minha vida. Porque a vida levou a gente na primeira metade da vida. É real, né? E aí começou a passar isso na cabeça. Não adiantou nada. Cheguei aqui, 3 semanas depois estava na BRF.

    E como você foi parar na BRF, nesse desvio de apenas 3 semanas? Lá nos Estados Unidos, você avisa muito antes que vai sair e os caras já começaram a falar comigo. Eu já tinha tomado café uma vez com Abílio e com Pedro Faria. Eu voltei como consultora e logo entrei na empresa. E esse foi um dos maiores fracassos da minha vida. Eu quero deixar isso bem claro e pode botar online. Foi o maior fracasso da minha vida, porque eu não li o cenário. Eu queria tirar o sal, a gordura e melhorar a comida do brasileiro. Eu só não li o ambiente. Eu virei CEO da companhia no Brasil, era poderosíssima, mas a empresa não queria fazer isso. Ela não queria, então eu dava um passo para frente e dois para trás. Era uma guerra lá dentro que eu vivia o tempo todo. Uma guerra. Depois de 2 anos, eu fiquei 3 meses sem dormir. Eu não dormia. Eu me vi numa situação de liderança onde eu, teoricamente, tinha um poder para fazer, mas a empresa, no dia a dia, vivia outra coisa.

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    E como foi quando você decidiu sair? Eu fiquei quieta. Não falei com os fundos. Não falei com ninguém. As pessoas me ligavam. Os investidores me ligavam e eu falei, cara, eu vou ficar quieta. Só eu sei a razão pela qual eu saí. Um ano depois, acontece a Carne Fraca (operação da Polícia Federal que investigou frigoríficos do país inteiro por adulterar carnes). Olha como é a vida. Vários dos meus pares foram presos. Eu passo então de louca para inteligente, para visionária. Mas não foi nada disso. Eu tive uma crise de valores. Eu estava no lugar errado. Eu tive que lidar em estar em um  lugar de poder enorme e ao mesmo tempo não ser capaz de realizar aquilo que eu queria e ter que lidar com a minha humildade. “Errei, é um fracasso. Vou embora daqui. Não consegui fazer o que eu queria”. Foi a primeira vez que eu tive que lidar com isso tão forte.

    O que você não leu no ambiente? Qual que era o seu objetivo e qual era o objetivo da empresa que você não leu? Eu tinha uma coisa muito clara, que é o seguinte, o mercado de alimentos no Brasil, ele está 15, 20 anos atrás do que ele tem que estar. Opera de uma maneira muito pouco moderna. Eu tinha acabado de voltar dos Estados Unidos e tinha conseguido fazer no Burger King essa relançamento, de ir atrás do pão que era mais legal, da batata frita que tinha menos gordura. E a BRF tinha toda uma linha de alimentos que eu queria botar menos conservantes, mais proteínas, mais vitaminas. Eu queria botar a BRF 5, 10 anos na frente do ponto de vista da saudabilidade. E a empresa estava muito presa ainda nos custos. É uma empresa exportadora de frango, no fundo. Eu cheguei a fazer um acordo com Jamie Oliver, para lançar uma linha dele e ele seria o nosso consultor. Eu queria que ele fosse nas fábricas comigo e dissesse o que é que tinha de mudar. Porque é uma coisa que ele faz para outras empresas. Eu lembro de ele exigir que a produção, as galinhas, os frangos, tivessem brinquedos, que tivessem uma densidade menor. A gente teve que fazer toda uma adaptação. Os caras de operação queriam me trucidar. Eles não entendiam que aquilo era um piloto, que era um conceito, que era uma coisa para dar um pulo para o futuro. Eles achavam que eu simplesmente estava criando uma besteira. E não era. 

    Alguns críticos diziam que um dos grandes erros da BRF na época foi justamente querer ouvir o consumidor quando de fato a questão da empresa eram os custos. O que o consumidor queria? Não era o que o consumidor queria? Era totalmente o que o consumidor queria. A BRF teria sido trendsetter, o que estamos vendo acontecer hoje no setor de alimentos. Agora ela está atrás. Olha essa história. A Seara tinha lançado o menu sem sal. E aí eu fui uma vez no Pão de Açúcar e o mocinho promotor falou pra mim assim: “olha, essa parada aqui é sem sal”. Porque a Seara fez a única entrega daquela época de saúde, e que foi falar que tinha  30% menos sal. E a gente ia lançar a empresa de alimentos do futuro. E por que o Jamie Oliver? Porque as receitas dele não vão sal. Ele usa temperos. Existem estudos que mostram que fomos educados a gostar de sal. Mas as crianças não são assim. O Jamie Oliver era para trazer conceitos novos para o mercado de alimentos. Que hoje, se você olhar, olha o que está acontecendo? A minha estratégia que era a saudabilidade.

    O Pedro e o Abílio sabiam que esse era o seu desejo como CEO? Total, total e total. Eu tinha alinhado a estratégia com eles. Eles sabiam. O problema não era a estratégia. O problema é que quando eu comecei a pôr a mão nas coisas, e comecei a fazer as coisas… é só ver que até hoje tem um problema de sócios ali.

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    E como é que foi se reconstruir depois disso? Aí eu fui para “empty zone”. Que é a nossa capacidade de ficar no nada. É de desconstruir tudo. E reconstruir de outro jeito. Antigamente as pessoas tinham os rituais de Passagem, elas iam para a montanha, elas tomavam tempo delas. Elas ficavam no vazio. Mas hoje a cidade não deixa a gente estar no vazio. Eu tenho todos os meus amigos vivendo isso, de passar por essa transição de carreira. Transição de propósito, transição de vida. Eu devo ter passado uns bons 2 ou 3 anos nessa zona vazia, de não ficar fixada numa coisa que você fez nos últimos 30 anos. Porque a gente não é só isso. Eu comecei a fazer milhões de cursos. Passei 6 meses estudando junto com a Ciça (Cecília Ivanisk) e a gente montou a Learn to Fly. Olhe bem. É uma startup de psicologia, educação e tecnologia. O que que eu entendia dos 3? Nada. Então eu tive que ir para esse lugar. Para o nada. Eu tinha que aprender tudo do zero. E claro, sem muitas das amarras de quando você tem 18 anos. Eu não tinha mais a preocupação financeira, não tinha mais a necessidade do reconhecimento das pessoas.

    E conta um pouco sobre esse mundo novo que você passou a estudar. O que você aprendeu? A geração dos nossos avós, nossos pais, eles vieram de uma cultura sólida. Eles vieram de uma cultura extremamente sólida. Eles tiveram um emprego. Um cônjuge. E moravam em uma cidade, às vezes moravam a vida inteira numa casa. Nossos filhos vão ter 5 carreiras e 15 empregos. Não sei quantos relacionamentos vão viver e não sei em quantas cidades vão morar. A gente lida hoje com o mercado desses jovens que estão na liquidez total. As pessoas falam assim: eu não sei o que está acontecendo com a saúde mental? Gente, o quanto a gente realmente preparou esses jovens para isso? Para essa mudança, para essa instabilidade. Os nossos pais tiveram que desenvolver uma competência social que era manter relacionamentos. Os jovens têm que ter outra competência que é se abrir para novos relacionamentos. Conhecerem pessoas novas. Então eles têm que ter as duas competências. Ficou muito mais complexo. E aí você pega esses jovens, que vão ainda para educação formal, com química, tabela química, mas ao mesmo tempo eles estão no YouTube, aprendendo a educação informal o tempo todo. Há 30 anos, quando eu comecei a trabalhar, os meus chefes eram os meus mentores. As pessoas tinham tempo mais para outras. Hoje as pessoas estão sozinhas. E eu fui estudar a solidão. Solidão é um dos maiores, se não o maior sintoma do mundo, não só nos jovens, mas nos velhos também, todas idades. Um estudo de Harvard mostra que a felicidade vem com a qualidade das conexões. São relacionamentos significativos que trazem felicidade. Aí a gente volta para esse mundo novo, onde esses jovens são jogados no mundo corporativo, ficam lá dois anos e vão para outro e ficam mais dois anos e passam a achar que a vida é transacional, transando com todo mundo. E aí você vê jovens completamente perdidos, depressivos, o mundo caminhando para o burnout. O número de suicídios crescendo, de automutilação.

    E aí vem a solução fácil de culpar as redes sociais. E não é isso. Não é isso. É falta de educação sócio-emocional. Como é que a gente  aprende a escovar os dentes? É fazendo todo dia, e vira um processo automático. Como é que você aprendeu a escrever, como aprendeu a ler. Com prática, prática, prática, prática. E me conta, como é que você aprendeu resiliência? Não aprendeu. E empatia? Também não aprendeu. Você tem que ter um plano de ação exato da competência socio-emocional do que você quer desenvolver. 80% das pessoas, por exemplo, têm fobia de falar em público. Como é que você faz?  Você coloca a pessoa para falar com uma pessoa. Fala, fala, fala. Depois com 2. Depois com 5, depois com 10, e um dia chega a 5.000. Isso é uma competência social de comunicação. Se esse jovem não souber dizer oi, ele tem muita vergonha de dizer oi e isso atrapalha a vida dele, qual é o plano? Não é eu falar no feedback de uma empresa “você tem que se soltar”. E para um jovem tímido, um engenheiro, você chega e diz que ele tem que se soltar. Soltar o quê, minha filha? Não. Você tem que ensiná-lo a trabalhar sua competência social de interação, de construir uma rede. E qual vai ser a ação? Por onde eu começo? A Fly está criando justamente esta jornada. Ela começa com um plano de ação que é dizer bom dia para um estranho todo dia. Oi. Aí todo dia vai falar bom dia por dez dias. Depois evolui para uma conversa rápida. Oi, bom dia, tudo bem com você? É assim que você aprendeu a ler e a fazer tudo na sua vida. Você coloca as crianças para discutir bullying na sala de aula. Quando essa criança sai e vai comprar um chocolate, que é quando ela é bulinada, ela não sabe o que fazer. Ela tem que ter uma técnica para lidar com o bullying. Então você não pode criar um programa de matemática onde você aprende conceito e pratica a matemática sem parar e na outra ponta um programa sócio-emocional onde você só discute os conceitos. Ou só dialoga. Você tem que ensinar na prática as técnicas para as competências sócio-emocionais. E essas técnicas existem hoje. 

    Mas aí eu queria entender exatamente onde entra a Learn to Fly. Veja a questão da diversidade. A minha teoria é de que não se trata de uma questão de diversidade nas empresas. É questão de inclusão social. Se eu boto um jovem periférico dentro da corporação e ele não cria rede de apoio, relacionamento, se ele não tem com quem almoçar, se ele não brinca com ninguém, e depois de 2 anos ele continua ali, sozinho, ele vai embora. Por melhor que seja a oportunidade. Ele tinha uma rede de apoio, ele tinha a mãe dele, e ele está largando toda aquela rede. E aí a mentoria tem um papel essencial, porque hoje a gente tem alguns programas com fundações e ONGs que começam a mentoria antes deste jovem entrar no mercado de trabalho. E depois esse jovem entra e continua a mentoria. Então, o que a Learn to Fly faz é criar a rede de apoio. A inclusão passa pela tolerância, passa por construção de relacionamento , passa pela abertura de falar bom dia, o outro fala bom dia para você. O CEO tem que falar bom dia. Na mentoria, a gente tem um trabalho de Match de mentor e mentorado feito por algoritmo e inteligência artificial, baseado em valores e objetivo. Temos outro produto que chama trilhas de autoconhecimento, para a pessoa aprender suas competências sócio-emocionais e depois discutir em grupo. Por enquanto, a empresa está inteira em B2B. Ela não foi para o meu sonho, que é um dia virar B2C. 

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    E como seria esse B2C? A gente está trabalhando na jornada de bem-estar e estamos desenvolvendo um app para que a pessoa todo dia, em cima da competência que ela quiser desenvolver, treine na prática. O escovar os dentes todo dia. Esse é meu sonho. Hoje a gente tem uma trilha, por exemplo, de mentalidade de crescimento, que tem 21 atividades de 3 minutos cada uma. Então você tem um conceito, você tem um vídeo, você tem um quiz e  você tem uma prática. A gente está falando de 20% de conhecimento e 80% de prática.

    E as empresas entendem essa necessidade de ensinar e desenvolver competências sócio-emocionais? Eu não estou querendo lançar uma coisa óbvia, eu sei que é uma coisa que está antes do seu tempo, então eu tenho que criar como marqueteiro, eu tenho que saber o timing. Muitas empresas não estão ainda no tempo. Quando a gente começou a fazer mentoria, 4 anos atrás, ninguém falava de mentoria. Agora o assunto está bombando. Agora já estou falando de jornada de bem-estar. Quando a gente começar para o grande público, já vai ser trending. Estou trazendo um produto para o Brasil antes do tempo dele. Tem empresas que já entenderam que o caos está aí, que a volatilidade está aí. As novas gerações são melhores do que a gente e nesse sentido eu concordo com a Rita Almeida. 

    Você leu o bate-papo com a Rita Almeida? Claro. E eu eu vou te falar uma coisa que é real, minha. Eu tenho vergonha da nossa geração. Eu me beneficiei muito do Brasil, mas eu, mas a minha geração, deixou um Brasil pior do que recebeu. Eu tenho uma culpa, e eu não quero me desvencilhar dessa culpa. Porque eu me beneficiei muito individualmente, entendeu? Mas eu deixei um Brasil pior para os meus filhos e eu acho que a gente tem uma obrigação de trabalhar para a nova geração. Eu sou uma filha da ditadura, a minha mãe tem uma cicatriz daqui a aqui (mostrando uma parte do corpo) da batalha da Maria Antonia na USP. Depois a gente mudou para Natal e escutava Chico Buarque escondida. Eu sou cinquentona. Eu não quero mais esse mundo. Eu não sei quanto você convive com os jovens, mas eles têm preocupações mais legais. E a gente tem que ajudá-los. Nós temos como clientes os trainees da Kraft Heinz. Estávamos num grupo de resiliência e um deles perguntou assim “Flávia, é normal a gente querer desistir?”. Todo dia!!!!! Se você não tem um momento destes uma vez por semana, olha, você não é humano. Mas a resiliência não é não querer desistir. É não desistir. E olha essa pergunta desse jovem! Quando que a gente falou para ele que é normal ele querer desistir? Já ouviu alguém falar? A gente só precisa falar, é normal. Tem dias que eu quero desistir. Tem horas que eu quero assistir. Tem manhã que eu quero desistir. E aí eu levanto e vou. 

    Quer ler outras edições do nosso papo de domingo? Aqui estão os links:

    Thereza Quintella: os indícios apontam para uma nova Guerra Fria

    Dora Cavalcanti: desigualdade penal está até no telefone pós ou pré-pago

    Rita Almeida: “Nova fronteira do preconceito é o público acima de 75 anos”

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