… e Escorpião, estimulado pelas histórias do amigo Félix, arrebatado pela melodia inflamada e subjugado pelos sentimentos juvenis do companheiro, enamorou-se de Margarida, a cozinheira, supondo que ela fosse uma fada. Presumo a partir desse fato que as fadas têm barba, pois Madalena Margarida — não se trata da Madalena arrependida — ostentava barba e bigode, como um glorioso guerreiro.
O fragmento acima pertence a um romancinho meio descontínuo e muito nonsense chamada Escorpião e Félix. Foi escrito por um jovem alemão de 18 ou talvez 19 anos que respondia pelo nome de Karl Heinrich Marx, o mesmo que mais tarde redigiria um manifesto (em parceria com o amigão do peito Engels) incitando os trabalhadores do mundo à união e, ainda mais tarde, então em carreira solo, publicaria uma obra em vários volumes chamada O Capital, que, mesmo lida por poucos e entendida por quase ninguém, modificaria a face política do planeta.
Para o bem da literatura alemã e da sua própria imagem como estudante de filosofia, Marx nunca publicou seus escritos ficcionais, tampouco seus versos eivados de romantismo juvenil, todos sofríveis segundo os críticos que tiveram o dever ou a curiosidade de lê-los. Como, então, o fragmento acima e o texto integral da novela chegaram a nós? A resposta tem a ver com um certo Herschel Marx, pai do malfadado ficcionista. (Estou exagerando ao denegrir o talento do jovem Karl? Cá entre nós, até que o fragmento acima é bem espirituoso).
Não é justo afirmar que Marx odiasse o pai, mas é possível deduzir que o desprezasse com toda a petulância de sua juventude. Ao receber a notícia da morte do seu velho, Marx deu de ombros e disse que tinha mais o que fazer em Berlim antes de se locomover até um enterro piegas e sem sentido. Mesmo assim, em anos anteriores, talvez por deboche, talvez por consideração, confiou ao pai o caderno com os manuscritos dos seus poemas e do seu romancinho.
Para marxistas ou antimarxistas, a leitura dessa ficção vale como curiosidade, até porque o texto é curto e não consumirá muito tempo do leitor, mas vale, sobretudo, como reflexão hipotética: o que teria acontecido ao mundo se Marx houvesse se tornado um ficcionista de sucesso? É possível que a sua outra ficção — a igualdade entre os homens assegurada por um estado centralizador — ainda estivesse por ser escrita?
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