Sou do tempo de matinê aos domingo. Em Vitória de Santo Antão, cinemas Braga e Iracema; no Recife, Cine Torre e Modelo. Filmes de bang-bang, com os heróis da época, Durango Kid, Roy Rogers e Buck Jones. Heróis e vilões bem delineados, enredo invariável: final feliz, o bem vencia o mal e um beijinho de adeus deixava a mocinha triste, porém, esperançosa. O gênero capa e espada era o preferido de minha mãe que suspirava frente aos encantos de Errol Flynn e Robert Taylor. E da fonte-símbolo da Atlântida brotavam adoráveis chanchadas.
Mudou tudo. Cinema de bairro já era. Não sou cinéfilo. E evito filmes que puxem muito pelo intelecto. Chorão confesso, minha medida do gosto pelas películas é ditada por sentimentos e emoções. Chorei, filme aprovado! “A noviça rebelde”, “Cinema paradiso”, “Um santo vizinho” e “O menino de pijama listrado”, quase me afogo no vale de lágrimas. Agora com TV, Apple, YouTube e a Netflix, estou solto na buraqueira.
Deu na telha de assistir ao “O mecanismo”. Chorei para dentro. De raiva. De indignação. Li pela imprensa a arenga político-ideológica sobre a série. Claro, encrenca previsível num país partido ao meio, maniqueísta, incivilizado que vem trocando, sistematicamente, a força do argumento pelo argumento da força. As etiquetas pejorativas carregadas de ódios desfazem amizades e apodrecem o saudável debate público. É fascista para um lado; stalinista para o outro; coxinhas e mortadelas, tão saborosas, amargam na boca das ofensas.
Li muita coisa que saiu publicada sobre a matéria. Sem a menor capacidade de avaliar roteiro, fotografia, desempenho dos atores e coisas do gênero, me dei conta que, no mimimi, não encontrei uma referência ao principal personagem do filme: o Brasil.
É bem verdade que personagem tem que assumir uma forma. Neste caso, a forma toma corpo dentro de cada espectador. Como já tinha lido a obra de Vladimir Netto, Lava Jato, historicamente preciosa, factual, jornalisticamente consistente (exceto para os pecadores da inveja), ainda não digeri o espanto de ver, eis a forma, a “amada” Patria-mãe, a Mátria (crédito para Caetano), profanada, violentada, escorraçada, humilhada, sangrando para o deleite dos tenebrosos vampiros.
É o conjunto da obra diabólica do crime organizado que interessa; são tentativas asquerosas em “estancar a sangria” que enojam; é o risco da impunidade que atemoriza. Delinquência não tem lado.
Virou arte. Livro e série. As futuras gerações agradecem.
Gustavo Krause é ex-ministro da Fazenda do governo Itamar Franco