Autonomia. Era o tínhamos até março de 2020. Uns mais, outros menos. Um medo aqui, uma dúvida ali. Mas gente de vida normal – não encarcerada – ia e vinha movida pelo desejo, pela necessidade. Ou por obrigações.
Era assim. Gente mais para o normal, vez por outa, dava-se o sagrado direito de descumprir obrigações – grandes ou pequenas. Necessidade sempre foi coisa mais rígida. O “tem que” é mais impositivo. Mas o bom e velho desejo tinha autonomia para desfazer, desarrumar e rearrumar tudo. Sempre foi possível desobrigar-se. Soberano, o desejo garante (ou garantia) a autonomia, com o limite de não ferir, não matar, não roubar.
Foi assim até um ano atrás. Nossa autonomia era tanta que nos permitiu fazer Presidente da República um coiso. Não foi desejo de todos, mas foi de muitos. Para alguns uma birra, desejo incontrolável de fazer perder os que vinham ganhando sempre. Ser humano tem dessas coisas.
Pra outros o coiso foi uma escolha. Tosca, é verdade, mas escolha, fruto do autônomo desejo – às vezes, como no caso, inconsequente, temerário.
Os que a gente, na nossa autonomia de pensar, enxerga como toscos incomodam-se muito com costumes que não são os seus, com jeitos diferentes de viver a vida, com horizontes mais largos e sem comandos de fé, padre ou pastor. Incomodados, revoltam-se e, dizendo defender Deus, pátria e família, votam. Às vezes, pior, provocam guerras. Nada santas.
No voto ou à bala, o propósito será esmagar os diferentes, as diferenças. Sem saber desfrutar de autonomia pessoal, juntam-se em bandos. Não serão razoáveis em nada, com nada. Praticam obediência cega às suas descrenças. Têm olhos cercados por antolhos, ódio como inspiração.
Pois então. No ano em que um vírus roubou nossa autonomia de viver segundo nosso desejo, indo, vindo ou ficando, topamos de frente com dois monstros: a doença no modo aerossol e o governo dos toscos. Um ameaça com a morte, outro, incompetente, atrapalhado e malvado, força para antecipar as mortes. A julgar pelo que assistimos, por puro prazer.
Se diariamente vivemos o difícil desapegar-se da autonomia de antes em favor da sobrevivência, também toda hora, o dia inteiro, tememos pelo o que mais virá dos toscos.
O game é violento, tipo Mortal Kombat, Wolfenstein 3D ou GTA. Passamos da fase do isso-não-está-acontecendo, para a do é real – tudo está acontecendo. Somos os alvos, eles os snipers.
A vida de antes já é memória. A de agora é pânico. Sem autonomia. Sobrevive o desejo de viver para contar – o que foi? o que poderia ter sido? o que ficará?
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Tânia Fusco é jornalista