Trabalhar das 9 às 9, seis dias por semana? Jovens chineses pedem folga
A cultura da dedicação total ao trabalho, que ajudou a impulsionar a explosão econômica da China, começa a mostrar algumas brechas
Qualquer chinês entende o significado dos três números: “996”. Eles representam o regime de trabalho das 9 horas da manhã às 9 da noite, de segunda a sábado – algo inconcebível nos países ocidentais onde a semana de 48 horas já parece longa demais (na França, é de 35 horas).
A extrema dedicação ao trabalho é uma característica cultural de países orientais como China, Coreia e Japão, mas a “construção do comunismo” exigiu dos chineses sacrifícios adicionais.
Quando o capitalismo vigiado substituiu o regime da propriedade coletivizada, as exigências continuaram as mesmas – ou até aumentaram. O trabalho duro passou a dar mais recompensas, o padrão de vida subiu espetacularmente e o país se transformou numa potência industrial, tecnológica e científica capaz de pousar uma nave na Lua ou de fabricar os celulares de praticamente o planeta inteiro.
Fora das fábricas ainda em regime “selvagem”, onde os trabalhadores moram em galpões anexos, como se fossem servos, são justamente as empresas de tecnologia que exigem mais de seus funcionários – ou que alcançam mais repercussão quando acontecem casos abusivos.
Em janeiro, morreram dois funcionários da Pinduoduo, gigante do comércio via redes sociais, num episódio atribuído ao excesso de trabalho. A ByteDance, “mãe” do TikTok, pede uma semana de seis dias por mês.
Não é um fenômeno recente. A novidade é que surgiu um movimento de inconformismo com a carga horária pesadíssima. Tem até nome, “tang ping”. A melhor tradução seria “de pernas para o ar”.
A origem do movimento é atribuída a Luo Luazhong, um operário de fábrica que largou o emprego e foi andando de bicicleta até o Tibete. Na volta, passou a escrever sobre o estilo de vida “tang ping”.
“Trabalhando numa fábrica, eu me sentia como um rato. Agora estou bem, relaxado, feliz. Não acho que tenha nada de errado em não querer passar a vida trabalhando como um rato”, foi uma de suas mensagens de maior repercussão.
Não é nada diferente das crises existenciais que tantos jovens, de tantas gerações, viveram no Ocidente. Na China, soou como heresia. A hashtag #TangPing foi banida do Weibo, o Twitter chinês.
A ideia subversiva de que é possível viver “de pernas para o ar” – com pouco, sem maiores ambições materiais, mas também sem a pressão por resultados – tem um certo apelo a muitos jovens da geração de filhos únicos que se sentem espremidos entre a responsabilidade pelos pais, uma das vigas mestras do contrato social chinês, e as demandas de um mercado exigente.
A economia chinesa já se ressente do declínio na força de trabalho. A política do filho único, essencial para um país ainda beirando a miséria como a China dos anos oitenta do século passado, hoje se reflete numa força de trabalho que já alcançou o pico. Os números têm dimensões chinesas: o encolhimento populacional será de 260 milhões nas próximas três décadas.
Permitir até três filhos por casal, como foi anunciado no começo do ano, não significa que a população em idade fértil dará ouvidos. Os custos de moradia e educação são os fatores preponderantes nesse tipo de decisão
É possível ter menos gente trabalhando – ou gente trabalhando menos – se a produtividade aumentar, um campo em que a China ainda tem muito a evoluir. Segundo cálculo da Bloomberg, a produtividade chinesa chegará a 70% da americana somente em 2050.
Trabalhar menos é uma demanda de tempos de fartura – e nunca tantos chineses tiveram tanto como nos tempos atuais.
Viver de pernas para o ar demanda o tipo de liberdade individual que é um artigo raro na China. Que um ex-operário tenha inspirado tantos jovens a, se não seguir, pelo menos admirar seu estilo de vida, mostra que sonhar é para todos. Mas tem um significado especial para quem vive no esquema 996.