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Que rei será ele? Aceitar mala de dinheiro foi tiro no pé de Charles

Falta de noção ao receber doação em espécie para filantropia é a última coisa que se esperava de um herdeiro que se prepara há setenta anos para o trono

Por Vilma Gryzinski 28 jun 2022, 08h40

Quanto custa um príncipe? Grandes ações filantrópicas podem “comprar” um membro da família real britânica, que aparece ao lado do doador ou até vai a suas festas, emprestando o prestígio que só a casa de Windsor tem.

Mas receber uma mala e até uma sacola de supermercado cheia de dinheiro – da chiquésima Fortnum & Mason, onde o chá da tarde custa 70 libras, ou 500 reais – é uma prática associada a políticos corruptos, traficantes de drogas ou contrabandistas, não ao herdeiro da eternamente impecável rainha Elizabeth.

Desde que o Sunday Times revelou que o príncipe Charles recebeu 3 milhões de euros, em dinheiro vivo, do xeque Hamad bin Jassim bin Jaber Al Thani – HBJ, para simplificar –, da família real do Catar, até monarquistas leais se perguntam: onde ele estava com a cabeça?

O dinheiro foi direto para o Fundo Benemerente, um dos braços da rede de organizações filantrópicas criadas por Charles. Entre os vários beneficiados, estão iniciativas para o desenvolvimento sustentável e o apoio a atividades agrícolas tradicionais, fora um ou outro castelo que o príncipe renova inteiramente.

Mas é claro que o futuro rei tem que não apenas ser acima de qualquer suspeita, como parecer acima de qualquer suspeita.

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E as doações não aconteceram no vácuo. O emirado árabe, rico em reservas fósseis e em comportamentos discutíveis, como as suspeitas generalizadas de que sacolas com muito mais dinheiro trocaram de mãos para garantir ao micropaís a próxima Copa do Mundo, tornou-se o “dono de Londres”, no sentido literal.

Com investimentos de espantosos 42 bilhões de dólares, o Catar tem propriedades icônicas, como a Harrods e o Shard, o edifício em formato de caco de vidro, e uma rede de imóveis que hoje ultrapassa os da rainha.

Um desses investimentos provocou um atrito com o príncipe em 2009. Os prédios de apartamentos em estilo moderno atiçaram o conservadorismo arquitetônico de Charles. Ele chegou a propor um arquiteto de sua predileção para redesenhar o conjunto, mas não convenceu os xeques.

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Não é impossível imaginar que as doações, feitas entre 2011 e 2015, tiveram por objetivo aplainar o atrito e cultivar uma relação mutuamente benéfica: o príncipe entra com o prestígio, os xeques com o dinheiro.

Mas por que o xeque HBJ, que era primeiro-ministro na época, não fez um cheque? Talvez a organização que regula os órgãos beneficentes descubra uma resposta, em sua anunciada investigação, talvez o assunto seja diplomaticamente engavetado.

Se não houve vantagem pessoal, não há muito a ser investigado. Mas fica o dano para a imagem de Charles, que aos 73 anos é o herdeiro que há mais tempo espera chegar a sua vez. Mas cada vez que sua mãe parece estar prestes a ceder ao peso da idade – 96 –, ela reaparece, sem nenhum sinal de que vai abrir caminho ao filho.

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Ao contrário da rainha, que em suas sete décadas de reinado seguiu criteriosamente o princípio de jamais tomar partido sobre nenhum assunto em público, Charles é cheio de ideias, em especial em questões relacionadas ao meio ambiente e ao urbanismo. Seus assessores plantam na imprensa opiniões que ele quer fazer chegar aos verdadeiros detentores do poder – os representantes do Parlamento, de onde saem os governantes eleitos pelo povo.

Um exemplo recente: o príncipe achou “deplorável” o plano do governo Boris Johnson de transferir para Ruanda os imigrantes ilegais que chegam através do Canal da Mancha. Por motivos diferentes, tanto Charles quanto Boris acabaram fazendo visitas coincidentes ao país africano e se encontraram para um chá com croissants

O establishment político sabe que ele pretende ser um rei mais participativo e se conforma com isso.

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Reis ou, mais excepcionalmente, rainhas compensam com soft power a falta de poder real, perdido ao longo dos séculos em que foi sendo construída uma democracia parlamentarista. Podem – embora não devam – influenciar o debate e praticar o jus esperneandi nos bastidores.

Além da posição altamente simbólica que têm entre a população, os integrantes da família real são os mais valorizados relações públicas do cenário mundial. Diferentes ministérios estabelecem quais países interessa ao Reino Unido cultivar, que produtos e projetos pretende vender, onde o soft power vai funcionar melhor. E lá vão príncipes, quando não a própria rainha, abrir portas.

Seguindo este princípio, Charles esteve em três ocasiões no Catar durante o período em que o dinheiro vivo pingou na conta de sua fundação. Estava cumprindo uma função de estado. Mas agora paira a sombra de uma dúvida inconveniente: dá para “comprar” um príncipe, com doações filantrópicas, até com “Bin Ladens”, o apelido das cédulas de 500 euros que estavam nas sacolas porque foram muito usadas no financiamento do terrorismo islâmico.

A rainha já tem problemas suficientes com o filho Andrew, riscado da linha de frente por causa do processo por abuso sexual que encerrou com um pagamento de 15 milhões de dólares, e o neto Harry, que agora vive de contar segredos familiares. Não precisava ver o herdeiro envolvido num comportamento tão pouco digno.

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