Reviravolta é pouco. Antes do resultado que deu a Sergio Massa o lugar triunfante no primeiro turno, o veteraníssimo ex-presidente uruguaio José Mujica havia resumido: “A Argentina é uma coisa indecifrável”.
Referia-se, justamente, à estranheza da situação em que um candidato presidencial viável é o ministro que comanda uma economia com inflação anual de 140%, dólar a mil pesos, reservas zero e outras misérias.
O desempenho abaixo do projetado de Javier Milei acabou obscurecendo uma realidade: existe uma nova direita na América Latina, ela frequentemente perde oportunidades por falta de uma doutrina clara e coerente, mas seu aspecto mais marcante é que os que simpatizam com ela perderam as crenças no papel do estado como indutor do crescimento econômico e protetor dos cidadãos.
É um fenômeno de dimensões históricas e foi com ele que Milei que aflorou. Somando a votação mais pálida à candidata de centro-direita, Patricia Bullrich, foram 54% dos votos. Nada garante que a votação em Bullrich se transferirá ao ultralibertário — aliás, nada garante nada, nunca, na Argentina. Mas é difícil ver os votos da oposicionista correndo em direção a Massa.
A América Latina, por circunstâncias históricas com um eleitorado tão suscetível ao “cheque do governo”, tem demonstrado que o fracasso administrativo dos populistas de esquerda e a ascensão da nova direita são fenômenos de proporções históricas.
Mesmo quando perde, a nova direita tem resultados que valem ser lembrados. Com um discurso mal sintonizado e falta de jogo de cintura, o empresário José Antonio Kast teve 44% dos votos no segundo turno no Chile. Rodolfo Hernández, outro alienígena no mundo da política, teve 47% na Colômbia. A popularidade do vencedor, Gustavo Petro, que se imagina um revolucionário — com boa dose de razão, considerando-se que foi da luta armada, pelo M19 — está em 33%. Muitos eleitores parecem arrependidos nos dois países.
No Equador, o mandato-tampão presidencial será exercido, surpreendentemente, por Daniel Noboa, herdeiro de um “império da banana”. Além de rico, ele é jovem, bonito e casado com uma influenciadora, O discurso vencedor foi o da mão dura contra o crime. O poder da droga transformou um país outrora pacífico, abreviou o mandato presidencial de Guillermo Lasso e mostrou que o estilo do salvadorenho Najib Bukele tem futuro.
Foi a promessa de endurecimento no combate ao crime que também levou Patricia Bullrich, ex-ministra da Segurança, a conseguir seus 23%, numa disputa dominada pelos adversários.
Ninguém, obviamente, se compara a Milei em excentricidade e radicalismo no discurso ultraliberal, um sucesso com o eleitorado jovem, principalmente masculino, mais sensível à trilha musical e ao rock pauleira de propostas como implodir o Banco Central e passar a motosserra nos gastos públicos.
O colunista Rodrigo de Almeida mostrou em VEJA Online uma pesquisa do Monitor do Debate Político feita com jovens partidários de Milei que, mais do que a bronca, como dizem os argentinos, eles são movidos a esperança de que o candidato passe mesmo a motosserra em tudo que tem dado errado no país.
A ideia da motosserra messiânica e as críticas unânimes ao projeto de dolarização ajudaram a empurrar Massa para o primeiro lugar.
“Como se explica que um ministro da Economia, com uma inflação como a que a Argentina tem, tente chegar à presidência?”, perguntou José Mujica, retoricamente. “A Argentina tem uma mitologia”, respondeu o próprio, referindo-se ao peso histórico do peronismo.
Um ministro da Economia que não entende de economia é o mais votado no primeiro turno e um economista que trata assuntos complexos de seu metiê como se estivesse fazendo um stand up de comédia vão se enfrentar no segundo turno, em 19 de novembro com a dinâmica intervertida: quem está com o vento a favor é Massa.
Se conseguir controlar loucuras de seus partidários, como propor romper relações com o Vaticano e dar aos homens o poder de decidir a paternidade, por causa de mulheres que “furam a camisinha”, Milei ainda tem uma chance? Na indecifrável Argentina, tudo pode acontecer.