Todas as hipóteses são previsíveis até que aparece uma completamente imprevisível. Em geral, é a que causa mais estragos.
Por causa dessa realidade da vida, é obrigatório levar em consideração uma pergunta terrível: um Vladimir Putin humilhado na Ucrânia, com uma população revoltada com as perdas humanas e uma ala linha dura pronta para derrubá-lo, mostraria ao mundo que não estava blefando ontem, quando disse que recorreria a todos os meios para “defender” a Rússia de um perigo que ele mesmo criou?
Ninguém tem a resposta, embora a maioria dos analistas concorde que Putin continua a ser um agente racional e seu anúncio de ontem, de uma “mobilização parcial”, é um movimento que tem como objetivo principalmente as condições internas, de críticas abafadas ao andamento da guerra.
O Ministério da Defesa da Ucrânia, que dominou espertamente as artes da propaganda, chegou a ironizar: “A última vez em que a Rússia (o império russo) anunciou uma mobilização foi em agosto de 1914. Eles estão implorando por um bis”.
Mas o fato é que as reações internas ao anúncio da mobilização – reservistas que fizeram o serviço militar obrigatório abaixo de 35 anos e suboficiais abaixo dos 45 – foram parecidas com as que aconteceram no início da invasão. Nada que lembre o clima de rebelião espontânea, com soldados fuzilando oficiais nos campos de batalha da I Guerra, que levou à Revolução de 1917.
Houve manifestações de protesto, inclusive em cidades da Sibéria, a região mais pobre do país de onde saíram muitos dos combatentes atuais, teoricamente profissionais que assinam contratos. Em Moscou, um grupo reunido na rua Arbat entoou: “Mandem Putin para as trincheiras”. Os presos passavam de 1.400 na manhã de hoje. As passagens para os poucos lugares que ainda aceitam cidadãos russos sem visto, como Turquia, Armênia e Dubai, sumiram ou subiram até dez vezes de preço.
Nada que altere o panorama atual. Se houver algum movimento contra Putin, será interno. Disso não há sinais conhecidos, embora o fato de que o discurso sobre a mobilização, anunciado para a noite de terça-feira, só tenha sido feito ontem de manhã, tenha provocado especulações que iam de um ataque incontrolável de tosse a dissensões internas.
Enquanto o Kremlin acusa o golpe, a Ucrânia está num momento de moral alto com os avanços sobre áreas onde os russos se consideravam instalados para sempre. Nada menos que 87% dos ucranianos, “este povo tão nobre e mártir”, nas palavras do papa Francisco, depois de se enganar gravemente sobre os motivos da guerra e querer distribuir culpas entre os dois lados, é contra concessões territoriais para terminar a guerra. O número aumentou, em vez de diminuir, desde a última pesquisa, mostrando o espírito de resistência que domina o país.
Sem a possibilidade de negociações, a guerra só poderia terminar com a derrota de um dos lados. A da Ucrânia é inadmissível para os aliados ocidentais, pois destruiria toda a ordem mundial do pós-guerra, nas palavras corretas de Joe Biden, e abriria as portas para o expansionismo russo, inclusive sobre países que já fazem parte da Otan. Se os três bálticos ou até a Polônia fossem atacados, a Otan estaria obrigada a responder – numa escalada que previsivelmente se tornaria nuclear.
A Rússia putinista também não vai aceitar bater em retirada. Os mais recentes rugidos de Putin mostram que ele ficou mais fraco – e por isso mais perigoso.
Ameaçar o mundo de guerra nuclear não apenas é uma loucura, como disse o papa, mas também traz um elemento altamente desestabilizador para países como a China e a Índia. A China quer vender produtos, avançar em todas as esferas do desenvolvimento e superar os Estados Unidos como potência hegemônica por meios competitivos.
Para quem vai vender sua produção fabulosa se metade do mercado consumidor tiver sido incinerado no holocausto atômico ou sob o inverno nuclear que exterminaria quase toda a vida humana no planeta ?
A transformação de Putin numa espécie de Kim Jong-un com mísseis nucleares melhores e maiores pode provocar o impossível: uma solução que envolva Estados Unidos e China para conter um homem que era frio, calculista e estratégico e hoje parece um perdedor do tipo “se eu afundar, todo mundo afunda comigo”.
O mantra de que “um Putin acuado é um Putin perigoso” é incessantemente repetido, mas o oposto também vale: tentar acuar Europa e Estados Unidos com ameaças nucleares provoca medo, mas induz igualmente à conclusão que ceder seria o pior negócio de todos.
A guerra, obviamente, continua.