Ser assassinado é a melhor maneira para um líder político virar um monumento gigantesco em Washington.
Um estranho Abraham Lincoln de pedra contempla o mundo sem nada da grandiosidade dos faraós egípcios, mas com intrínseca dignidade. Martin Luther King, uma abominação estética nos padrões do monumentalismo soviético, tem olhos puxados – nada estranho, pois foi feito na China, pelo escultor Lei Yixin.
Muito mais elegante, e à prova de modismos, é a chama eterna na sepultura de John Kennedy. Fica ao nível do chão, como todos os túmulos do cemitério militar de Arlington, entre placas de pedra.
Isso tudo nos leva, num salto acrobático, a Donald Trump, que hoje se torna o quadragésimo-quinto presidente dos Estados Unidos. Por enquanto, e provavelmente para todo sempre, ele tem poucas chances de virar monumento oficial.
Mas a hipótese de que uma “tragédia” acontecesse em sua posse foi mencionada de propósito na CNN, como uma especulação jornalisticamente legítima sobre o que aconteceria se tanto Trump quanto o vice, Mike Pence, sumissem do mapa.
Isso dá uma ideia do ambiente, mais do que hostil, verdadeiramente envenenado em que Trump assume a Presidência. Imaginem se algum meio de comunicação aventasse a possibilidade de que Barack Obama fosse assassinado em alguma de suas duas posses. Provavelmente, seria execrado como terrorista, racista e propagador do discurso do ódio e da violência.
Com Trump, vale tudo. Em parte, por culpa dele mesmo: o estilo, e muitas das ideias, do bilionário desbocado inspiram reações descontroladas. Isso é um perigo para o jornalismo, pois não existe nada mais fácil na profissão, hoje, do que competir para ver quem escreve ou diz as piores coisas sobre Trump.
Sem cair na minoria oposta – comentaristas da Fox News, redatores do site Breitbart e agregadores do Drudge Report -, vamos fazer o esforço de não usar destemperos verbais e analíticos para avaliar como será a fase inicial do governo Trump.
Os fatos sempre têm o péssimo hábito de se imiscuir nos prognósticos, mas alguns pontos parecem ter um lugar garantido. Vamos aos principais:
1-OPOSIÇÃO NA RUAS
As manifestações em curso entre hoje e amanhã são, nas palavras de organizadores, um treinamento para o que virá.
Os Estados Unidos têm hoje uma “categoria profissional” de manifestantes – aliás, como no Brasil -, dedicada em tempo integral a treinar o núcleo duro dos protestos de rua. Entre suas habilidades, inclui-se a arte da provocação, como se viu em alguns comícios de Trump durante a campanha. A massa dos bem intencionados, dedicados ao saudável exercício das manifestações democráticas, vai atrás.
Nos protestos de ontem em Nova York, o estilo Black Bloc foi evidente. O diretor Michael Moore fez um discurso prevendo: “Com muito esforço da nossa parte, ele não vai durar quatro anos”. É o tipo de prognóstico que vem sendo repetido com insistência, tanto como expressão de desejo quanto por especulações baseadas em encrencas potencialmente reais.
Os protestos de agora são genéricos, contra Trump de forma geral. É praticamente certo que se tornem muito mais agressivos quando acontecer o inevitável: um cidadão negro ser morto por policial. Independentemente das circunstâncias (que contam cada vez menos no tribunal da opinião pública, onde cada um acredita na versão que mais coincide com seus pré-julgamentos}, haverá protestos muito maiores do que os ocorridos durante o governo Obama.
David Cay Johnson, um dos maiores inimigos de Trump na imprensa e autor de um livro sobre le, diz que, num quadro de múltiplos distúrbios, o novo presidente pode decretar uma espécie de estado de emergência, cancelar a lei que proíbe a intervenção das Forcas Armadas em distúrbios domésticos e suspender garantias constitucionais como o habeas corpus. É inconcebível, mas dá uma ideia do nível de oposição que Trump desperta.
2- O ENIGMA RUSSO
Absolutamente tudo o que Trump fizer – e o que não fizer – em relação à Rússia será escrutinado à luz das inúmeras e espantosas acusações de que estabeleceu uma associação ilícita com o regime de Vladimir Putin.
Qualquer indício concreto desse tipo de tramoia seria motivo para a abertura de uma investigação e até de um futuro processo de impeachment, mesmo com a maioria do Partido Republicano na Câmara e no Senado.
Algumas certezas nesse terreno pantanoso: os serviços secretos russos têm uma fantástica máquina de desinformação e encontraram um ambiente propício na extrema-direita americana (e na esquerda também: Jill Stein, a candidata a presidente falsamente “verde”, esteve em comemorações oficiais na Rússia, da mesma forma que Michael Flynn, o general reformado indicado como assessor de segurança nacional por Trump).
Em princípio, Trump não precisa tomar nenhuma atitude em relação à Rússia logo em seus primeiros dias como presidente, quando estará ocupado com a nova reforma no sistema de saúde, o muro na fronteira com o México (ou qualquer alternativa a ele), a reforma fiscal e a desregulamentação da economia.
Cada um desses temas é de altíssima complexidade e alguns vão consolidar ou não o ambiente de otimismo na economia (sim, Trump desafiou mais prognósticos; a bolsa subiu 6% desde sua eleição e as perspectivas de crescimento aumentaram).
Mas, sendo quem é, Trump dificilmente deixará de cutucar o vespeiro russo logo de cara. Em princípio, não é errado tentar uma reaproximação com a Rússia que não fragilize aliados americanos na Europa Oriental nem seja baseada em avaliações ingênuas (lembram-se da “tecla de reiniciar” da então secretária de Estado Hillary Clinton?}.
3- INIMIGOS EM LUGARES IMPORTANTES
A primeira coisa que Trump fará amanhã, sábado, será uma visita à sede da CIA, que fica numa confluência dos três estados que convergem para Washington. O prédio em Langley, na Virginia, é igualzinho a reprodução que aparece em inúmeros filmes, incluindo o paredão de mármore branco com os nomes dos agentes mortos em serviço (ou apenas uma estrela, nos 117 casos extremamente secretos para serem revelados mesmo depois da morte).
Muitos desses filmes mostram diretores da CIA conspirando contra presidentes, geralmente no papel de vilões. A realidade, como sempre, é mais intrigante: o diretor que deixa a CIA agora, John Brennan, que foi funcionário de carreira da agência, conspirou contra Trump e, para os inúmeros inimigos do novo presidente, fez papel de herói.
O confronto sem precedentes aconteceu por causa da obscura conexão russa. Trump e Brennan trocaram desaforos por causa do dossiê que menciona os encontros sexuais mais difíceis de descrever desde o uso erótico de um charuto envolvendo Bill Clinton e Monica Lewinsky – além de um certo vestido azul e outros detalhes constrangedoramente expostos na época.
O dossiê foi feito por um ex-agente inglês e incluído pelo FBI, na categoria do “andam dizendo por aí”, em apresentações feitas a Obama e ao próprio Trump – uma maneira evidente de legitimá-lo pelo simples fato de ser mencionado.
“Fontes” de inteligência falaram a vários órgãos de imprensa que os encontros com prostitutas em Moscou, registrados pela espionagem russa, eram um instrumento de chantagem sobre Trump. Isso significa que elementos em posição de destaque na CIA acreditam no que consta do dossiê, embora evidentemente sem poder apresentar a comprovação, como tudo nessa área. Ou conspiraram abertamente contra o presidente eleito.
Mesmo trocando a direção da CIA, como acontece habitualmente, Trump não pode se permitir um clima de inimizade com o serviço de inteligência. Visitar a Fazenda, como os íntimos chamam a sede da CIA, é apenas o primeiro passo de uma reconciliação obrigatória.
Se não funcionar, as vulnerabilidade de Trump aumentam a um nível próximo do insuportável. Só para lembrar: muitos integrantes da esfera dos serviços de inteligência discordaram das políticas de Obama a ponto de se desiludirem ou até deixarem suas funções.
4- JERUSALÉM, JERUSALÉM
Outra questão que Trump não precisa ativar de imediato é como se relacionar com Israel e a encrenca palestina. Mas já foi noticiado que o novo governo pretende se pronunciar sobre o status de Jerusalém. A Cidade Santa e disputada foi tomada em 1967, depois da vitória contra os países árabes que pretendiam varrer Israel do mapa.
Pelas normas internacionais, Israel, que considera a cidade sua capital, tem que devolver a parte que conta de Jerusalém, a oriental, onde ficam os lugares santos das três religiões monoteístas. Dificilmente isso vai acontecer, principalmente depois que diversos acordos de partilha foram rejeitados por líderes palestinos.
Mas as embaixadas estrangeiras ficam todas em Telavive. Transferi-las para Jerusalém seria aceitar o status quo vigente – e é exatamente isso que defende o embaixador nomeado por Trump, o advogado David Friedman.
Mudar a embaixada americana provocaria um frenesi em países árabes e muçulmanos em geral. Trump poderia complicar a situação ao fazer isso no âmbito de uma proposta de paz negociada por seu genro, Jared Kushner.
Nomear parentes já é complicado e demiti-los é pior ainda. Colocá-los para conseguir o impossível, pelo menos até agora, parece absurdo. A única esperança parece ser o princípio mais importante da arte da negociação pregada por Trump: começar com as propostas mais extremas e depois brigar, brigar e brigar até chegar ao acordo imaginado desde o inicio.
Ah, sim, ter um entendimento com a Rússia poderia ajudar no Oriente Médio- se o regime putinesco tivesse interesse em acalmar o ambiente internacional e não agitá-lo como vem fazendo.
5- A DAMA DOURADA
Este quesito é só para descontrair o clima envenenado e mencionar a divertida briga dos “estilistas contra Trump”, os nomões do mundo da moda como Tom Ford e Marc Jacobs que aderiram a um boicote sartorial contra a primeira-dama, Melania.
Que político na face da Terra pensaria em entrar nesse tipo de corte e costura? Donald Trump, claro. Espicaçado numa entrevista amistosa (da Fox, claro), o presidente disse que gosta dos óculos da linha de Tom Ford, mas não das roupas e nunca ninguém pediu ao estilista que vestisse Melania.
Protegida por uma esplêndida armadura dourada, assinada por Reem Acra, libanesa radicada em Nova York, Melania Trump desfilou pela festa na noite anterior à posse seguindo o estilo habitual: ex-modelo casada com bilionário que se veste para deslumbrar.
Nesse quesito, Trump não tem com que se preocupar. Até a estátua de Lincoln deve ter levantado as pálpebras cansadas para dar uma olhada.