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Casa do espanto: os estranhos ritos do Parlamento britânico

As sucessivas e inconclusivas votações sobre o Brexit expõem ao mundo o cerimonial cheio de bizarrices da mãe de todos os legislativos

Por Vilma Gryzinski 14 mar 2019, 13h58

Caos, abismo, traições, divisão, descontrole, incompetência criminosa das elites e desprezo generalizado das bases pelos políticos. A Grã-Bretanha parece estar vivendo dias de Brasil por causa do Brexit, que não ata nem desata.

Com o nível das discussões entrando no campo de malabarismos bizantinos, fora dos limites do Reino Unido o que chama mais atenção são os rituais do funcionamento da Câmara dos Comuns, com parlamentares se digladiando dos dois lados da mesa maciça que separa as bancadas e um baixinho metido gritando “ordem, ordem”.

Em inglês soa mais divertido porque John Bercow, o presidente da Câmara, muda a acentuação tônica e pronuncia a palavra como se fosse oxítona :”Ordeerrr, ordeeerrr”.

Com poder apenas para presidir os trabalhos, Bercow tem um monte de outros truques no saco de maldades. O último foi bloquear a votação de uma emenda proibindo um segundo plebiscito sobre o Brexit.

Fazer o povo votar até se enquadrar com o que querem as elites anti-Brexit, como Bercow, é uma manobra comum em muitos parlamentos.

Mas tudo que acontece no salão comparativamente pequeno, com menos lugares para sentar nos bancos de couro verde do que parlamentares – culpa de Winston Churchill, que preferiu uma reconstrução pós-bombardeios alemães exatamente igual ao original –, tem um peso histórico quase impossível de ser comparado com os congressos de outros países.

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Um exemplo: o antecessor mais conhecido de John Bercow é William Lenthal. Em 4 de janeiro de 1642, ele resistiu à exigência do rei Carlos I de dizer onde estavam escondidos os quatro parlamentares que ele queria prender (o quinto, Oliver Cromwell, continuou sentado e mudou a história britânica).

De joelhos e com todo o respeito possível na situação, Lenthal respondeu: “Não tenho olhos para ver nem língua para falar nesse lugar que não sejam como me mande esta Casa, à qual sirvo”.

Deu em Guerra Civil, o mais convulsivo episódio da história do reino. Em dez atribulados anos, Carlos I foi preso, julgado e decapitado. Cromwell comandou o que era, na prática, uma república e morreu de doença, uma raridade para um período tão violento.

APOPLEXIA

Quando a monarquia foi restaurada, o filho de Carlos I mandou desenterrar o corpo de Cromwell e outros regicidas, decapitar os cadáveres e exibir as três cabeças já quase mumificadas em estacas na frente do Parlamento.

Apesar da demonstração de poder, a monarquia teve as asas bem cortadas. No eterno conflito entre católicos, anglicanos e protestantes puritanos, embutido na disputa mais ampla entre os monarcas e o Parlamento, este sempre saiu ganhando. E os católicos sempre saíram perdendo.

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Carlos II, sempre suspeito de ser um católico no armário, tentou aumentar os limites da tolerância religiosa e controlar o Parlamento. O conflito só terminou quando o rei morreu de apoplexia, sem deixar herdeiros de seu casamento com a princesa portuguesa Catarina de Bragança.

Como o irmão e herdeiro de Carlos era mais religiosamente incorreto ainda, o Parlamento fez outra rebelião, derrubou o rei (dessa vez com exílio no lugar de decapitação) e repatriou da Holanda a filha dele, Maria, protestante de raiz, e o marido dela, Guilherme de Orange.

O episódio todo ficou conhecido como Revolução Gloriosa e formalizou o poder único do Parlamento na Declaração de Direitos de 1689.

Eleições livres, funcionamento regular do parlamento, autoridade legislativa, controle orçamentário, criação de exércitos e, principalmente, de impostos, foram algumas das exigências estabelecidas para os novos monarcas, proibidos de “suspender as leis ou seu cumprimento”.

Era pegar ou largar. Evidentemente, Maria e Guilherme preferiram pegar.

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Preservar a posição de autoridade, a função cerimonial e o papel simbólico dos monarcas, deixando um amplo espaço de ambiguidade para erodir seu poder, foi uma dança que durou séculos e acabou livrando o reino da violência revolucionária.

Enquanto França e Estados Unidos inspiraram repúblicas em todo mundo, num sistema de tábula rasa, a mãe de todos os parlamentos, ou Parlamento-Mãe, aperfeiçoava uma democracia parlamentar sem uma constituição formal, cheia de acordos tácitos e de deferências à tradição.

A Câmara dos Lordes, por exemplo, tem cada vez menos lordes de verdade – aqueles que herdam títulos de nobreza, moram em castelos e inspiram séries de televisão que saciam a curiosidade eterna da plebe sobre a vida da alta aristocracia.

Atualmente são 92, num total de mais ou menos 780. Os outros são bispos anglicanos (26) e autoridades ou ex-políticos, contemplados com um título vitalício da rainha por recomendação dos líderes dos partidos. A baronesa Thatcher, por exemplo, chegou a dividir os assentos vermelhos com o barão Kinnock, o líder do Partido Trabalhista que ela atormentou e derrotou durante anos.

Depois de muita hesitação, Neil Kinnock, não resistiu à honraria, à Câmara que propôs várias vezes extinguir e à boquinha (sem salário, mas com um pró-labore de 300 libras por sessão de trabalho, por assim dizer).

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Como a Câmara dos Lordes não tem poder de veto desde 1911, seu papel é reduzido. Todas as manobras que tentou contra a saída da União Europeia, decidida em plebiscito, tiveram pouco efeito.

Já na Câmara dos Comuns, o poder é quase absoluto. Nenhuma corte pode interferir em legislação por ela aprovada. Aliás, até recentemente não existia sequer uma Suprema Corte, uma ideia que parece cada vez menos absurda.

A corte atual limita-se analisar aspectos constitucionais, daquela constituição não escrita, mas abrangendo um conjunto que vai desde a Magna Carta, de 1215, a Declaração de Direitos e documentos considerados seminais.

Seria inconcebível que decisões importantes da competência dos representantes eleitos, como o aborto e o casamento homossexual, fossem tomadas pela Suprema Corte, como aconteceu no Brasil e nos Estados Unidos.

Aliás, o Parlamento em si abrange as cortes e o próprio monarca. Para uma instituição que remonta à era anglo-saxã, quando já existia um conselho dos nobres chamado Witan como órgão consultivo dos monarcas e assembleias locais, incluindo quatro representantes eleitos de cada aldeia, essa organicidade está entranhada em cada pequeno gesto.

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A Mesa da Casa, com maiúscula, fica entre as duas bancadas. Sobre ela, Atas do Parlamento que ninguém, obviamente, nunca lê; uma bandeja com papéis para anotações que ninguém nunca usa; às vezes um jarro com água que ninguém toma.

Mais as duas caixas de madeira trabalhada, antes destinadas a documentos e hoje contendo trechos da Bíblia e outros textos sagrados, incluindo o Corão (as caixas são cópias feitas na Nova Zelândia, depois que as originais foram incendiadas num bombardeiro alemão), sobre as quais recém-eleitos prestam juramento, e o objeto mais chamativo, a maça cerimonial.

MÃO NA MAÇA

Feita de prata dourada no século 17, ela é carregada todo dia até a Câmara dos Comuns para simbolizar a autoridade real do monarca. Os Parlamentares só podem fazer sessões, debater e aprovar leis quando a maça está sob a mesa. Mas em algumas circunstâncias, como se reúnem em comissões, fazendo aquilo que todo mundo sabe, o impressionante objeto fica debaixo da mesa.

As discussões sobre o Brexit são tão incendiárias que um parlamentar, o trabalhista Lloyd Russell-Moyle passou a mão na maça e tentou tirá-la da sala porque achava que os conservadores estavam “pisoteando o princípio da democracia parlamentar”. Ou talvez tivesse tomado umas e outras em algum dos 24 restaurantes, lanchonetes e bares que existem em Westminster. Foi perdoado.

A linha vermelha no chão diante de cada bancada demarca um espaço suficiente para que, caso um parlamentar saque a espada para atacar outro, o potencial agredido tenha tempo de desembainhar a própria arma.

Obviamente, armas frias ou quentes não são mais usadas no Parlamento, com o cabide para casaco com o nome de cada representante ainda tem uma tira para dependurar espadas.

As votações são orais (“Aye” ou “No”). Se estiver confuso, os parlamentares sentam-se ou levantam-se., conforme a preferência Se a confusão persistir, o presidente grita “Divisão” e os parlamentares entram em fila para seus votos serem contados. O resultado é lido ao presidente, depois de uma curvatura de cabeça.

Curvar a cabeça também é o método para que os parlamentares da turma do fundão consigam falar nos debates, chamando a atenção do presidente, que lhes passa a palavra.

Se conseguir, o mais desconhecido parlamentar tem o direito de fazer perguntas diretamente ao chefe de governo, nas sessões de quarta-feira.

Os debates mais animados são entre o primeiro-ministro e o líder da oposição, frente a frente, no estilo agressivo e irônico que os britânicos desenvolvem desde a escola e aperfeiçoam nas faculdades da elite ou em reuniões sindicais.

John Bercow, um ultraconservador que se aproximou de posições liberais quando era parlamentar, abriu mão do severo terno de cetim negro, usado com camisa de jato e punhos de renda, quando se tornou presidente, ou speaker. Usa ternos comuns e gravatas espalhafatosas.

Mas não pode deixar de lado, em circunstâncias cerimoniais, o longo manto preto com galões dourados, com a cauda carregada por um pagem.

Nessas ocasiões, mal disfarça um sorriso autoirônico, mas também evidentemente satisfeito. Com todos seus salamaleques e tradições, o Parlamento é um lugar onde o filho de um motorista judeu descendente de romenos (Bercow) pode andar de manto, a filha de um verdureiro (Margaret Thatcher) comandar uma transformação existencial e o filho de um mineiro do País de Gales (Neil Kinnock) virar barão.

A mistura de tradição e democracia orgânica é uma garantia de que o atual líder trabalhista, o ultraesquerdista Jeremy Corbyn, não vai propor trocar o conteúdo das caixas de despachos por obras de Marx, Lênin e Trotsky se vier a ser primeiro-ministro.

O que não o impedirá de mencionar seus inspiradores ideológicos no hipotético programa anual de governo. E a rainha terá que, obedientemente, ler o discurso na cerimônia anual na Câmara dos Lordes.

Antes, o Cavaleiro Ostiário do Bastão Negro (Black Rod, em inglês) baterá cerimoniosamente três vezes sua estrovenga na porta trancada da Câmara dos Comuns.

Por causa daquele episódio intempestivo protagonizado por Carlos I em 1642, nenhum monarca nunca mais pode entrar na Câmara dos Comuns.

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