Alexei Navalny: os tiranos matam porque podem, não porque precisam
Qual o motivo para Putin se preocupar com um adversário derrotado, isolado numa prisão no Círculo Ártico? A lógica do poder absoluto funciona assim
Simpatizantes secretos, ou não tão ocultos assim, começaram a argumentar, logo depois do anúncio da morte de Alexei Navalny, numa prisão no fim do mundo, aos 47 anos, que Vladimir Putin não teria motivos para eliminar o único líder oposicionista que conseguiu algum apoio popular significativo, num passado já quase esquecido.
Numa coisa estão certos: Putin está por cima. Conseguiu interromper e até, em alguns pontos, reverter a contraofensiva ucraniana; na mais recente prova, a bandeira russa foi hasteada na cidade de Avdiviika depois de quatro meses de combates. Ele tem o apoio de mais de 80% da população russa, o que garante uma reeleição de níveis soviéticos daqui a um mês. O preço das sanções econômicas e políticas parece ter sido absorvido sem grandes dramas e tudo que não for tão bem será colocado na conta dos americanos maus, não da insanidade expansionista.
O controle é tão absoluto que apenas pouco mais de 400 pessoas foram presas por ter levado flores e procurado se ajoelhar em homenagens póstumas a Navalny diante de memoriais que lembram as vítimas das grandes repressões da era soviética, na casa das dezenas de milhões.
ESTADO DE TERROR
Diante desse horror absoluto do passado, é preciso reconhecer: Putin não é nenhum Stálin. Nem de longe tem um aparelho repressivo como o da época dos grandes expurgos, capaz de prender, torturar, fuzilar ou enviar para os gulags incontáveis ondas de vítimas, inclusive, ou principalmente, comunistas convictos que morriam dando vivas a Stálin.
Mas a lógica do poder absoluto é a mesma. Stálin não precisava ter mandado matar dezenas de milhões de pessoas para se manter no controle, mas fez isso mesmo assim. Fez porque podia, tinha o prazer dos grandes psicopatas em inflingir sofrimento e ver o estado de terror em que todos viviam à sua volta.
Mas certamente os “feitos” de Putin também têm o efeito exemplaridade. Explodir o avião de Ievgueni Prigojin ou envenenar com plutônio o chá o ex-espião Alexander Litivinenko em Londres são exibições de poder. Além de mostrar o que acontece com quem sai da linha justa.
“VIGARISTAS E LADRÕES”
Alexei Navalny era um adversário – ou inimigo – insuportável pelos padrões dos detentores do poder total. Um homem alto, eloquente, com estampa de galã e até furinho no queixo, com senso de humor ferino, como tantos russos. No auge de seu apelo, chegou a colocar 200 mil pessoas nas ruas, clamando por um regime mais civilizado. Isso já tinha ficado no passado.
Mas Navalny continuava rindo e zombando dos “vigaristas e ladrões”, o nome com que chamava o partido de Putin. Depois de ter sido envenenado, numa tentativa de assassinato com Novichok, a substância secreta dos arsenais russos, ele não só teve o mau gosto de sobreviver como tripudiou sobre os algozes.
Em maio de 2020, ligou para um agente da FSB, a sucessora da KGB, passando-se por um assessor de Nikolai Patruchev, que continua a comandar a polícia política. Convenceu-o a comentar a tentativa de assassinato.
O infeliz lamentou a sequência de acontecimentos que haviam “dado errado”: o piloto do avião em que Navalny viajava quando entrou em choque com o envenenamento foi rápido demais em fazer um pouso de emergência e a equipe médica em terra eficiente demais. O agente também contou detalhes de como o “pó” maligno foi espalhado pela parte de dentro da roupa íntima que Navalny usava.
“Você se lembra da cor da cueca?”, provocou Navalny.
“Azul, acho”, respondeu o agente, sem se dar conta da zombaria.
SENSO DE HUMOR
A capacidade de rir das situações mais absurdas continuou mesmo quando, além de absurdas, as situações eram insuportáveis. Navalny comparou-se a Papai Noel quando foi mandado para a prisão no Círculo Ártico, onde “nunca fez menos do que 32 negativos”. Lembrou o filme O Regresso, em que Leonardo DiCaprio tira as entranhas de um cavalo morto para sobreviver a uma nevasca: “Não ia funcionar aqui, o cavalo congelaria em quinze minutos”.
Além da terapia intensiva na Alemanha, onde sua vida foi salva e recuperada, contra todas as expectativas, ele jogava Call of Duty para retreinar o sistema nervoso devastado. Contra todas as expectativas, também voltou para a Rússia. Um dissidente exilado, como tantas vezes a história russa mostrou, torna-se rapidamente irrelevante.
Ficaram, infelizmente, conhecidas as cenas do julgamento por vídeo, um dia antes de sua morte, em que Navalny, emagrecido mas não derrubado, brinca com o juiz e pede uma parte dos “enormes” de seus rendimentos para pagar as multas na prisão – os funcionários do judiciário russo vivem reclamando dos salários. Todo mundo dá risada.
O tipo de senso de humor cínico que Putin e seus capangas gostam apareceu na declaração sobre a causa da morte de Navalny: síndrome de morte súbita.
Tentar tirar a dignidade até de quem teve a vida tirada é típico de um regime de rufiões.
MENSAGEM DE ESPERANÇA
É triste ver a Rússia, com sua história de grandezas e de tragédias, com suas prodigiosas obras de literatura e música, não seguir um caminho menos obscuro e agressivo. Alexei Navalny era um nacionalista sem nada do “padrão CIA” de liderança que chegou a apoiar, num primeiro momento, a anexação da Crimeia.
Deixou num documentário de 2022 uma mensagem de esperança para o caso de ser assassinado.
“Se eles decidirem me matar, isso significa que somos incrivelmente fortes. Temos que usar esse poder”, disse.
Na verdade, a oposição a Putin é incrivelmente fraca e a morte de Navalny a desidrata mais ainda.
Mas quantas improbabilidades a história russa já mostrou ao mundo?