Como no rio de Heráclito, ninguém faz campanha eleitoral duas vezes no mesmo ambiente político.
Dirigida totalmente para a questão do Brexit, a obsessão nacional britânica, a campanha para a eleição parlamentar do próximo dia 12 mudou de rumo e está totalmente focada no homem que deve perder, mas também pode ganhar, com consequências impensáveis para o reino.
Jeremy Corbyn é o líder do Partido Trabalhista tão à esquerda, principalmente depois do período de aggiornamento também conhecido como era Blair, que até integrantes históricos pediram que os eleitores tradicionais do partido não votem nele.
Com cara de bom velhinho esquerdista, de barba e bolsa, boné de Lênin, dentes tortos e visual mal-ajambrado, Corbyn não tem nada de saudosista inofensivo.
Ao contrário, virou o tema principal da eleição – sempre um risco, considerando-se que quem mais aparece, mais fatura – por posições mais inacreditáveis ainda do que as habituais.
Uma das últimas: apresentou um dossiê “comprovando” que o NHS, o instituto nacional de saúde, estará “à venda” se o Brexit for aprovado como quer o primeiro-ministro Boris Johnson.
Está tudo lá, bem escrito. Os americanos malvados vão esticar suas garras para fatias privatizadas do leviatã estatal, cheio de defeitos e deficiências, mas também defendido como modelo por uma grande fatia da população.
Esta versão rola há muito tempo, mas o dossiê apresentado por Corbyn como prova do crime tem um pequeno problema: indícios patentes de que foi produzido pela inteligência russa, numa de suas muitas campanhas de dezinformatisya, a célebre especialidade de Moscou.
Como o líder do partido que se alterna no poder desde 1924 pode entrar numa roubada assim?
Provavelmente porque acreditou que ia colar. Ou porque ele próprio acredite no dossiê.
No mundo onde Corbyn, um obscuro deputado do “fundão”propulsionado para a liderança na primeira eleição direta do partido, sempre orbitou, tudo o que vem da Rússia é certo, considerando-se os domínios putinistas como herdeiros legítimos da velha – e boa, para ele – União Soviética.
Inacreditavelmente, ele pôs em dúvida seu próprio país quando agentes da FSB, o nome atual da KGB, tentaram envenenar Sergei Skripal, um espião russo renegado, com novichok em pleno território britânico.
Preferiu ficar em dúvida diante da montanha de provas- ou seja, do lado do inimigo.
Maluquices assim não significam que Corbyn seja bobo, muito ao contrário. A questão do antissemitismo, patente, reiterado, comprovado e filmado da ala esquerdista chefiada por ele, é perversamente manipulada.
Ao se fazer de inocente, dizendo que condena todos os tipos de racismo, Corbyn está mirando uma fatia do eleitorado que tem os mesmos sentimentos antissemitas e pode votar tanto no Partido Trabalhista como no Partido do Brexit, uma novidade que rouba eleitores do povão tanto à esquerda quanto à direita. É claro que quer trazê-los para se lado.
Tacitamente, ele e sua turma acham bom que britânicos de origem judaica – que, segundo a piada, ganhavam a carteirinha de membros do Partido Trabalhista logo depois da circuncisão – se afastem do partido, horrorizados.
São uma minoria desprezível, numericamente, e desprezada, intrinsecamente.
À exceção dos que continuam ardorosamente adeptos da seita corbynista e são apresentados como prova de que sua turma tem amigos judeus bacanas, sempre os primeiros a condenar Israel – atenção, a própria concepção de um país sionista, não eventuais governos.
Saudado em festivais de música como um certo ex-presidente brasileiro – com a enorme diferença de que nunca foi acusado nem condenado por corrupção -, Corbyn faz sucesso com fatias grandes da juventude hipster em geral.
Também tem o apoio daqueles que nasceram votando nos trabalhistas e, aconteça o que acontecer, jamais mudarão – exceto, claro, quando aparece alguém como Margaret Thatcher.
No momento, não existe ninguém. Nem existirá num futuro previsível.
O que tem para o momento é Boris Johnson. Ou, para camadas do conservadores contra o Brexit, o partido Liberal Democrata, renascido das cinzas e com uma líder nada animadora, Jo Swinson.
As propostas, do Partido Trabalhista da era Corbyn soam estarrecedoras num país de capitalismo avançado e pátria, pelo lado escocês, de Adam Smith.
Mas também têm um bom apoio popular. Entre elas, renacionalizar os meios de transportes e criar a internet “de graça”.
Como comunista de raiz, daqueles que não evoluem, Corbyn foi e continua sendo contra a União Europeia. Isso cria uma situação peculiar: fez campanha de má vontade contra o Brexit, mas sabe que precisa faturar os votos dos eleitores que não querem de jeito nenhum o divórcio com a União Europeia.
Com um cinismo de derrubar até os queixos mais endurecidos pelas realidades da política, ele diz que vai manter uma posição “neutra” sobre o assunto, aguardando um referendo – mais um – sobre o tema.
Seria cômico etc etc etc.
Alguma surpresa com o fato de que sempre foi muito simpático ao chavismo? E ainda se considera um latino-americano honorário (mas daqueles de barba e bolsa) por ter sido casado com uma chilena e, agora, com uma mexicana.
Diz que vai confrontar Donald Trump pessoalmente, em pleno Palácio de Buckingham e na frente da rainha, sobre a história do dossiê sobre o NHS.
Trump , em Londres para a reunião da Otan, já disse que os americanos não querem saber do sistema de saúde britânico “nem que nos oferecessem numa bandeja de prata”.
Pelas últimas pesquisas, o Partido Conservador está 12 pontos à frente dos trabalhistas.
Mas todo mundo sabe que de urna e cabeça de juiz – o ultrassom acabou com a surpresa da gravidez – pode sair qualquer coisa.
Afrontar Trump só pode trazer vantagens para Corbyn, segundo os cálculos eleitoreiros.
A rainha que se vire para controlar o homem que sempre, em qualquer situação, seja terrorismo ou assassinato praticado por potência estrangeira, fica sempre contra seu próprio país.