Não apenas do relato de suas rabugices se fez o rastro pelo Brasil de Robert Crumb, cartunista underground que esteve no país em agosto a convite da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O mercado editorial aproveitou sua passagem para colocar nas lojas obras do americano. Uma delas, Kafka de Crumb (Desiderata, 184 páginas, 39,90 reais), se destaca pela boa combinação entre as atormentadas linhas do escritor tcheco e o inquieto traço do americano.
Não apenas de Crumb, porém, é feito o livro. O roteiro é assinado por David Zaine Mairowitz, nova-iorquino que é autor de biografias, ensaios políticos e peças de teatro. Cabe a ele riscar o trajeto por onde trafegarão Crumb e o leitor, composto de trechos da vida do escritor, intercalados com pedaços de suas principais obras – como os romances A Metamorfose e O Processo e o conto Na Colônia Penal, em que Kafka cria uma engenhosa máquina de torturar e extinguir pessoas, possível metáfora da opressão que sente.
Não apenas os personagens de Kafka, afinal, sofriam de tormentos. O próprio escritor era uma fonte de angústia, matéria-prima para o terror do escritório que se lê em O Processo ou para o drama do pobre Gregor Samsa, transformado em inseto no clássico A Metamorfose. “O que tenho em comum com os judeus? Eu não tenho nada em comum comigo mesmo”, diz, numa página do livro, um acabrunhado Kafka, fazendo lembrar ao leitor o seu múltiplo desencaixe: como judeu que tinha uma relação de conflito com a religião do rigoroso pai, e com esse mesmo pai, como alguém que não se pacifica nunca consigo mesmo e como um homem que, não bastasse se sentir estranho no mundo, é crescentemente visto pelo mundo como tal, à medida que ganha força na Europa do século XIX o sentimento de discriminação contra os judeus.
Não apenas de Crumb e de Mairowitz, ainda, é feito o Kafka de Crumb, cujo título original, Introduzindo Kafka, dizia mais a seu respeito do que este que faz uso do cartunista como garoto-propaganda e que acabou sendo aproveitado em sua edição nacional. O brasileiro Allan Sieber também está lá, assinando um breve prefácio em que conta como o livro – que conheceu ainda nos anos 1990, a partir da edição americana – impulsionou sua incursão pela obra de Kafka. E de como ambas as leituras valeram a pena.
Maria Carolina Maia