Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

VEJA Meus Livros

Por Blog
Um presente para quem ama os livros, e não sai da internet.
Continua após publicidade

Só as mães são felizes?

.

Por Simone Costa
Atualizado em 13 ago 2018, 21h34 - Publicado em 3 mar 2012, 09h04

Sessenta e nove anos, baixa, cabelos grisalhos com permanente, maçãs do rosto salientes, de blusa azul-celeste, casaco branco e saia bege pregueada. Foi assim que Chi-hon descreveu a mãe, Park So-nyo, no panfleto que a família distribuiria para tentar encontrá-la depois de ela se perder do marido numa estação de metrô de Seul, na Coreia do Sul. O casal saiu do interior para uma comemoração com os filhos na capital e, já em Seul, o marido entrou no vagão do metrô e não percebeu que a mulher ficara para trás. Não é o desvendar do mistério do desaparecimento de Park So-nyo que o leitor acompanhará em Por Favor, Cuide da Mamãe (tradução de Flávia Rössler, Intrínseca, 240 páginas, 29,90 reais na versão impressa e 19,90 reais na versão e-book), best-seller da sul-coreana Kyung-Sook Shin que acaba de ser lançado no país. Seu sumiço é praticamente o fio da meada que conduz filhos e marido a um mergulho no passado para tentar compreender quem era aquela mulher que desapareceu aos 69 anos sem que eles realmente a conhecessem.

A ida de Park So-nyo e do marido para Seul tinha por objetivo a celebração, junto com os filhos, do aniversário de ambos. Fazia tempos que os filhos haviam deixado de ir até a aldeia onde os pais viviam para festejar. Pensando que era um fardo fazer duas comemorações, Park So-nyo sugeriu que se reunissem apenas no aniversário do marido, um mês antes do seu. “Então, todos começaram a dar o presente de aniversário de Mamãe no dia do aniversário do Pai. Por fim, a data de aniversário de Mamãe acabou naturalmente deslocada.” Park So-nyo é mãe de quatro filhos — ela teve um quinto, que nasceu morto — já adultos, que vivem em Seul. Ela e o marido moravam numa propriedade rural, que ela tocava como uma fábrica desde que se mudou para lá ao se casar, aos 17 anos. Pouco tempo havia se passado desde a Guerra da Coreia (1950-1953) e a família era muito pobre, mas ela fazia de tudo para não deixar os filhos passarem fome: fazia molhos, criava bicho-da-seda, fermentava malte, ajudava a fazer tofu, cultivava alimentos, criava galinhas e até cachorros, cujos filhotes vendia para ganhar algum dinheiro. E ainda tinha tempo para preparar todos os rituais ancestrais: um na primavera, dois no verão e dois no inverno.

A vida atribulada de Park So-nyo vai se tornando conhecida a partir da narrativa de seus filhos Chi-hon e Hyong-chol, e de seu marido, e também dela própria, que rememora o que passou. Os dois filhos e o marido carregam uma enorme culpa pelo seu desaparecimento e começam a perceber que nunca olharam para ela como um ser humano que também tinha sonhos, tristezas, alegrias. Apenas a viam como mãe e esposa. “Para você, Mamãe era sempre Mamãe. Jamais lhe ocorrera que ela tivesse tido 3, 12 ou 20 anos de idade. Mamãe era Mamãe. Já tinha nascido Mamãe”, refletia Chi-hon, uma escritora de sucesso, que se martiriza ao lembrar que estava na China para uma feira de livros quando a mãe desapareceu e só ficou sabendo do que ocorrera quatro dias depois. Ela se entristece ao recordar que a mãe era analfabeta e também ao relembrar o dia em que descobriu que ela tinha terríveis dores de cabeça sem dizer nada a ninguém. Chi-hon ainda se atormenta por não ter tido paciência com a mãe quando, por exemplo, ela lhe pedia para que não viajasse mais de avião.

Hyong-chol, o filho mais velho de Park So-nyo, diretor de marketing de uma construtora de prédios em Seul, não tinha muito tempo livre, mas no momento em que sua mãe desapareceu, ele estava numa sauna. Hyong-chol chegou até a pensar que o irmão mais novo estava exagerando quando ligou para informá-lo do que tinha acontecido. Ele foi o filho mais mimado pela mãe, que não deixava que os irmãos comessem antes dele e dava toda a carne do seu prato para o primogênito. Ao recordar as visitas da mãe a Seul, ele se lembra bem de quando ela chegava de madrugada, limpava toda a casa, cozinhava e ia embora ao anoitecer, dizendo que tinha trabalho na aldeia, quando na verdade só não queria tirar os filhos, que naquele tempo moravam juntos, de suas camas. Mas é o marido de Park So-nyo, no entanto, o mais aflito. Algum tempo depois do sumiço da mulher, ele decide voltar para o interior. Na casa vazia, ele a chama constantemente como se ela fosse responder. “Sua esposa, de quem você se esquecera durante cinquenta anos, estava presente em seu coração.” Por várias vezes, ele saiu de casa com outras mulheres, mas ela sempre o recebia de volta e cuidava dele.

Continua após a publicidade

Mais de 1 milhão de cópias de Por Favor, Cuide da Mamãe já foram vendidas na Coreia do Sul. O livro, que também foi publicado em duas dezenas de países, está dividido em quatro capítulos e um epílogo, e a maior parte do texto está escrito na segunda pessoa, como se a mãe desaparecida fosse a voz que reaviva dolorosas lembranças ou momentos em que bastaria ter tido uma atitude diferente: “Você se dá conta de que nunca ofereceu à esposa nem um copo de água morna quando ela passara dias sem conseguir segurar a comida no estômago por causa de uma indisposição severa.” Não chega a ser um enredo dramático, mas é bastante lastimoso, cheio de culpa e ressentimentos. O livro leva o leitor ainda a conhecer algumas características culturais da Coreia do Sul, marcada por tradições, mas também por aspectos extremamente modernos. Num país onde há liberdade religiosa, Park So-nyo seguia à risca os rituais ancestrais, contribuía com um templo budista e frequentava a Igreja Católica.

Não deixa de ser interessante comparar a história dessa mãe oriental que abdica de sua própria vida – ainda que guarde alguns segredos íntimos – com a “mãe tigre” de origem chinesa Amy Chua, autora de outro best-seller, Grito de Guerra da Mãe-Tigre” (também lançado pela Intrínseca). Este não é um livro de ficção, mas uma espécie de receituário de como criar os filhos para enfrentar as dificuldades do mundo. Em vez de deixar de comer, como faz Park So-nyo para alimentar o filho preferido que ela quer que estude e se torne um homem de sucesso, Amy Chua apregoa que os filhos não devem ser protegidos das aflições e desconfortos cotidianos. Nem todas as mães orientais são iguais, como o Ocidente muitas vezes faz supor. A crítica americana Maurren Corrigan, da Universidade de Georgetown, não gostou dessa mãe sul-coreana. Para ela, o texto é complemante alheio à “cultura terapêutica” americana ao passar a mensagem de que, se a mãe é completamente infeliz, a culpa é do marido e dos filhos ingratos. “Como uma leitora americana — doutrinada nas resolutas mensagens sobre “limites” e “tomadas de responsabilidade” –, fiquei esperando por ironia, um toque cômico na trama. Esperei até o final do livro, quando entendi que essa era uma ‘soap opera’ (novela) coreana travestida em ficção literária séria”, disse.

Em entrevista a uma TV portuguesa, a autora Kyung-Sook Shin contou como surgiu a ideia do texto. “Escrevi este livro porque, quando tinha 16 anos, fui com a minha mãe de trem para Seul. Durante a viagem, olhei para a minha mãe e ela estava com um ar muito solitário. E então prometi-lhe que um dia escreveria um livro dedicado a ela”. Talvez a intenção da autora fosse apenas dizer “olhe para sua mãe”. O tom muitas vezes acusatório na segunda pessoa pode ter sido o modo que ela encontrou para dizer que não é justo que — em maior ou menor grau, que varia de acordo com a cultura ou a condição financeira das mães –, as mulheres sejam as responsáveis por todo o andamento de uma casa e a criação dos filhos. O que é certo é que, apesar desse moralismo enrustido, ou justamente por causa dele, ao final do texto o leitor vai querer dizer pelo menos um “oi” para a sua mãe.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.