Ritual de passagem
A impressão que fica é que, romancista de primeira viagem, Lodato optou por não correr riscos
Mathilda Savitch, protagonista e título do livro que marca a estreia do americano Victor Lodato na literatura (tradução de Vera Ribeiro, Intrínseca, 216 páginas, 29 reais impresso e 19 reais o e-book) é uma adolescente quase comum. Alterna momentos de insegurança com rompantes de audácia, transita entre ações infantis e decisões sensatas, e é capaz de emitir opiniões triviais e argumentos sólidos no mesmo diálogo. O que difere Mathilda das demais garotas da sua idade – que o livro não diz, mas dá indícios que seja algo entre 12 e 14 anos – vai sendo revelado à medida que a história avança.
Sua família passa por uma crise diante de uma tragédia: a morte acidental de Helene, irmã de Mathilda, aos 16 anos. A narrativa, contada em primeira pessoa pela protagonista, se desenvolve pouco antes da morte de Helene completar um ano. Em tão pouco tempo, as cicatrizes não estão curadas. A mãe de Mathilda apresenta súbitas mudanças de humor e tendência ao alcoolismo. O pai passa a ser uma figura enigmática, caladão e de uma frieza glacial em relação ao mundo que o cerca. Mas estranho mesmo seria se ambos perdessem uma filha de maneira banal e reagissem com alegria e entusiasmo diante do fato.
E, no centro da família abalada, temos nossa heroína tocando sua vida, conciliando a perda da irmã-modelo com todos aqueles “problemas” da adolescência: “a escola é chata”, “meus pais não me entendem” e “meus amigos, bem, meus amigos parecem não ser tão amigos assim”.
A impressão que fica é que, romancista de primeira viagem, Lodato optou por não correr riscos. Com uma história linear, personagens convencionais e nenhuma ousadia estética ou linguística, o título pode ser visto como um livro adulto ruim ou uma obra infanto juvenil regular. Talvez o motivo de seu sucesso – já foi traduzido para 11 idiomas e bem recebido mundo afora – venha justamente de sua estrutura simples e de sua história familiar bonitinha e inofensiva, que ficaria muito bem num filme de sessão da tarde.
De mais interessante, o que o livro oferece é o pano de fundo em que a história se passa: nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. Em doses homeopáticas, o autor nos mostra que as mudanças que o acontecimento despertou na sociedade americana foram profundas, criando margem para traumas sociais e paranoias individuais ou coletivas.
Por exemplo, sem nenhum constrangimento, Mathilda desconfia que uma muçulmana com dois filhos pequenos em um vagão de trem possa ser uma terrorista prestes a mandar tudo pelos ares. Desconfia também que um colega de origem árabe, com “o sorriso mais branco e belo que já existiu”, possa ser um potencial homem-bomba. Os pais de Mathilda assistem aos noticiários trágicos, mas abalados pela perda recente, são incapazes de esboçar reações que vão além das lamentações.
O autor peca em deixar o assunto mais palpitante do livro diluído em comentários de uma adolescente. Talvez, se fosse narrado em terceira pessoa, o romance tivesse seu cenário mais bem explorado e construído, assim como as reações dos personagens às alterações vividas no cotidiano. Com isso, a obra cresceria muito e a descrição da transformação física e mental da adolescente teria maior força e estofo quando colocada no mesmo palco das mudanças ocorridas no país.
A passagem em que Mathilda esboça nos contar um curioso treinamento antiterrorista que recebeu na escola não merece mais que algumas linhas. Os capítulos do livro dedicados à insensatez que impregnou mentes e comportamentos – como de estocar alimentos e preparar abrigos antibombas – também ficam relegados a segundo plano e não passam de relatos superficiais vistos por olhos quase infantis.
Chamada por alguns jornais estrangeiros de “versão feminina de Holden Caulfield” (o protagonista adolescente de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger), Mathilda Savitch não chega à altura. Falta-lhe a picardia e a personalidade cáustica e autodestrutiva de Caulfield. Mathilda não entende o que se passa com o mundo e nem procura entender. Sua busca no livro é pelo entendimento próprio, numa jornada de amadurecimento que acaba sendo a transição do mundo infantil para o mundo adulto.
Muitas sociedades têm ou tiveram rituais de passagem. Os jovens índios amazônicos Satere-Mawé, por exemplo, têm de enfiar a mão em um buraco cheio de formigas-bala, insetos com ‘mordida’ fortíssima. Só após sofrerem picadas e passarem por dores intensas (alguns chegam a convulsionar) serão considerados adultos. O ritual de Mathilda não é tribal, mas não deixa de ser doloroso. Se o livro está muito distante de ser uma obra-prima, Mathilda e sua história, por outro lado, estão longe de ser desinteressantes para um público infanto-juvenil.