Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

VEJA Meus Livros

Por Blog
Um presente para quem ama os livros, e não sai da internet.
Continua após publicidade

Ritual de passagem

A impressão que fica é que, romancista de primeira viagem, Lodato optou por não correr riscos

Por Diego Braga Norte Atualizado em 31 jul 2020, 09h09 - Publicado em 7 abr 2012, 09h04

 

Mathilda Savitch, protagonista e título do livro que marca a estreia do americano Victor Lodato na literatura (tradução de Vera Ribeiro, Intrínseca, 216 páginas, 29 reais impresso e 19 reais o e-book) é uma adolescente quase comum. Alterna momentos de insegurança com rompantes de audácia, transita entre ações infantis e decisões sensatas, e é capaz de emitir opiniões triviais e argumentos sólidos no mesmo diálogo. O que difere Mathilda das demais garotas da sua idade – que o livro não diz, mas dá indícios que seja algo entre 12 e 14 anos – vai sendo revelado à medida que a história avança.

Sua família passa por uma crise diante de uma tragédia: a morte acidental de Helene, irmã de Mathilda, aos 16 anos. A narrativa, contada em primeira pessoa pela protagonista, se desenvolve pouco antes da morte de Helene completar um ano. Em tão pouco tempo, as cicatrizes não estão curadas. A mãe de Mathilda apresenta súbitas mudanças de humor e tendência ao alcoolismo. O pai passa a ser uma figura enigmática, caladão e de uma frieza glacial em relação ao mundo que o cerca. Mas estranho mesmo seria se ambos perdessem uma filha de maneira banal e reagissem com alegria e entusiasmo diante do fato.

E, no centro da família abalada, temos nossa heroína tocando sua vida, conciliando a perda da irmã-modelo com todos aqueles “problemas” da adolescência: “a escola é chata”, “meus pais não me entendem” e “meus amigos, bem, meus amigos parecem não ser tão amigos assim”.

Continua após a publicidade

A impressão que fica é que, romancista de primeira viagem, Lodato optou por não correr riscos. Com uma história linear, personagens convencionais e nenhuma ousadia estética ou linguística, o título pode ser visto como um livro adulto ruim ou uma obra infanto juvenil regular. Talvez o motivo de seu sucesso – já foi traduzido para 11 idiomas e bem recebido mundo afora – venha justamente de sua estrutura simples e de sua história familiar bonitinha e inofensiva, que ficaria muito bem num filme de sessão da tarde.

De mais interessante, o que o livro oferece é o pano de fundo em que a história se passa: nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001. Em doses homeopáticas, o autor nos mostra que as mudanças que o acontecimento despertou na sociedade americana foram profundas, criando margem para traumas sociais e paranoias individuais ou coletivas.

Por exemplo, sem nenhum constrangimento, Mathilda desconfia que uma muçulmana com dois filhos pequenos em um vagão de trem possa ser uma terrorista prestes a mandar tudo pelos ares. Desconfia também que um colega de origem árabe, com “o sorriso mais branco e belo que já existiu”, possa ser um potencial homem-bomba. Os pais de Mathilda assistem aos noticiários trágicos, mas abalados pela perda recente, são incapazes de esboçar reações que vão além das lamentações.

Continua após a publicidade

O autor peca em deixar o assunto mais palpitante do livro diluído em comentários de uma adolescente. Talvez, se fosse narrado em terceira pessoa, o romance tivesse seu cenário mais bem explorado e construído, assim como as reações dos personagens às alterações vividas no cotidiano. Com isso, a obra cresceria muito e a descrição da transformação física e mental da adolescente teria maior força e estofo quando colocada no mesmo palco das mudanças ocorridas no país.

A passagem em que Mathilda esboça nos contar um curioso treinamento antiterrorista que recebeu na escola não merece mais que algumas linhas. Os capítulos do livro dedicados à insensatez que impregnou mentes e comportamentos – como de estocar alimentos e preparar abrigos antibombas – também ficam relegados a segundo plano e não passam de relatos superficiais vistos por olhos quase infantis.

Chamada por alguns jornais estrangeiros de “versão feminina de Holden Caulfield” (o protagonista adolescente de O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger), Mathilda Savitch não chega à altura. Falta-lhe a picardia e a personalidade cáustica e autodestrutiva de Caulfield. Mathilda não entende o que se passa com o mundo e nem procura entender. Sua busca no livro é pelo entendimento próprio, numa jornada de amadurecimento que acaba sendo a transição do mundo infantil para o mundo adulto.

Continua após a publicidade

Muitas sociedades têm ou tiveram rituais de passagem. Os jovens índios amazônicos Satere-Mawé, por exemplo, têm de enfiar a mão em um buraco cheio de formigas-bala, insetos com ‘mordida’ fortíssima. Só após sofrerem picadas e passarem por dores intensas (alguns chegam a convulsionar) serão considerados adultos. O ritual de Mathilda não é tribal, mas não deixa de ser doloroso. Se o livro está muito distante de ser uma obra-prima, Mathilda e sua história, por outro lado, estão longe de ser desinteressantes para um público infanto-juvenil.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.