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‘O horror permite que mulheres machucadas também machuquem’

Revelação da literatura americana com um tijolaço de contos que chega à TV numa série à la ‘Black Mirror’, Carmen Maria Machado fala em 1ª mão a VEJA

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 ago 2018, 13h39 - Publicado em 3 ago 2018, 08h04
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  • Finalista do National Book Awards, vencedor do Bard Fiction Prize, eleito um dos melhores de 2017 pelos jornais New York Times e Washington Post e também pela revista Paris Review. Poucos livros de estreia obtêm um currículo como esses. Ainda mais se for um livro de contos. Ainda mais se for escrito por uma mulher. Ainda mais se trouxer a temática LGBTQ. Sem contar os diversos títulos e elogios em prêmios e veículos menores e o contrato para chegar à televisão, numa série antológica ao estilo Black Mirror ainda sem data para entrar no ar. Pode-se dizer que Carmen Maria Machado começou carreira com um pancadão: o volume de oito contos, graúdos e densos, O Corpo Dela e Outras Farras, que sai agora no Brasil pelo selo Minotauro, da editora Planeta (tradução de Gabriel Oliva Brum, 240 páginas, 49,90 reais).

    Um tijolaço. Não apenas porque os contos são de bom tamanho — não se trata de historinhas de três, cinco, sete páginas. Mas porque carregam tramas pesadas, que muitas vezes resvalam no fantástico e no sobrenatural, quando não no horror. A tensão, no entanto, está menos nos elementos estranhos ao nosso mundo do que naqueles que o compõem. O verdadeiro terror está na misoginia, na submissão feminina, no jogo de poder das relações sexuais — que também podem ser plásticas, eróticas e fortes, porque Carmen escreve sem pudor.

    “Corto os lugares onde uma coisa está costurada na outra. Desamarro corpetes. Posso vê-las, as mulheres, soltas de suas amarras, piscando para mim. ‘Saiam’, digo a elas. Rasgo bainhas e costuras. Os vestidos estão se desfazendo, parecendo mais vivos do que jamais os vi, o tecido se desprendendo como muitas cascas de banana, abas douradas, cor de pêssego e vinho. ‘Saiam’, digo de novo. Elas estão piscando, imóveis”, diz um trecho de Mulheres de Verdade Têm Corpos, conto em que uma epidemia misteriosa faça com que mulheres se desmaterializem aos poucos. Elas são as vítimas, desaparecem e perdem a voz, mas são tratadas pelos homens como criminosas, como culpadas por uma série de problemas que grassam pelo mundo em paralelo à tragédia que enfrentam.

    Sobre esse cenário apocalíptico do conto, duas meninas se apaixonam e evoluem para um relacionamento sério, ameaçado pela epidemia. Carmen não poupa o leitor das cenas de sexo. A mesma jogada se dá em outras histórias: a paixão contra o terror. Como em Inventário, em que a narradora — os contos, sintoma de uma geração, são narrados em primeira pessoa — lista as relações amorosas que teve ao longo da vida. “Eu não dormia com uma mulher desde a minha esposa, mas quando ela ergueu a minha camisa percebi o quanto eu queria seios, umidade e bocas macias”, conta a personagem, em uma passagem das menos picantes.

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    “O horror é uma ferramenta que permite ressaltar as experiências das mulheres para que elas também possam cortar outras pessoas”, diz Carmen a VEJA, diretamente da residência literária onde prepara um livro de memórias para o próximo ano.

    Aqui e ali, se notam no livro os trejeitos de autor estreante, como a repetição de recursos estilísticos e temáticos, além de um certo moralismo no conto em que mulheres recorrem a uma cirurgia bariátrica para emagrecer. 

    Um traço estilístico que parece próprio de iniciante é o volume de metáforas iniciadas por “como” inseridas ao longo do texto. São incontáveis e provocam um certo cansaço. Em alguns trechos, é possível ver duas ou três encadeadas, como aqui: “Minhas irmãs inclinavam os garfos e cortavam porções impossivelmente minúsculas de comida — cubos de melancia apropriados para bonecas, um caule fino de broto de ervilha, um canto de sanduíche como se precisassem alimentar uma multidão com uma única porção de salada de frango — e as engoliam como uma grande decadência”.

    Ainda assim, Carmen exibe uma musculatura de alguém que se empenhou bastante antes de exibir em público, pela primeira vez, o resultado dos exercícios. O Corpo Dela e Outras Farras é seu primeiro livro, mas um primeiro livro de alguém que se dedicou, consumiu os suplementos certos, esculpiu a força.

    Por vezes experimental — no primeiro conto, O Ponto do Marido, talvez o melhor de todos, ela costura causos de terror e a narradora dá instruções a quem for ler em voz alta –, o projeto literário da escritora, uma americana de origem cubana, é consistente. Ela apresenta a condição das mulheres de forma mais alusiva do que direta, passa longe do panfleto.

     

     

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    Capa de ‘O Corpo dela e Outras Farras’ (//Divulgação)

    Pela temática da sexualidade e opressão, seus contos têm alguma familiaridade com Nanette, o espetáculo da comediante australiana Hannah Gadsby, e com The Handmaid’s Tale, série baseada no romance distópico da canadense Margaret Atwood. Você já viu os dois programas? Eu vi os dois! Achei Nanette engraçado e devastador, e The Handmaid’s Tale é uma série bem trabalhada, mas difícil de assistir, porque a história é muito pesada e intensa. Sobre a australiana Hannah Gadsby ser pressionada a escrever mais piadas sobre lésbicas, acho que os autores devem escrever sobre o que eles querem escrever, e ninguém deve empurrá-los em uma direção ou outra.

    Incomoda que seu seja categorizado por muitos como literatura gay? Eu não me identifico como lésbica – estaria mais para “bissexual”, embora eu prefira “queer”. E tenho muitos leitores que não são gays. Acho que o livro fala a essas pessoas porque aborda temas comuns a todos sobre gênero e corpo. Eu não me identifico como lésbica, mas não me importo com a categorização. Lésbicas são fantásticas. Eu sou casada com uma.

    Em que medida escrever é um ato político? Toda escrita – toda arte – é política.

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    Para você, a relevância adquirida por esses temas nos últimos anos indica algum tipo de progresso social? Há quem diga que isso é um sintoma de progresso, mas eu discordo: a história é cíclica e tem tempos progressistas e conservadores. Neste momento, na verdade, as coisas estão muito ruins nos Estados Unidos, e elas provavelmente vão melhorar em algum momento, mas isso não significa que elas não voltarão a ficar ruins mais para a frente.

    Misturar temas como opressão feminina e elementos fantásticos ou próximos ao sobrenatural é uma forma de amplificar o horror que enfrentam as mulheres? O horror é uma ferramenta que permite ressaltar as experiências das mulheres para que elas também possam cortar outras pessoas.

    No Brasil, pelo menos, os editores dizem que a literatura é um produto consumido especialmente por mulheres. Por que, então, os livros são dominados por temas masculinos? Alguns homens são excelentes em escrever porque são seres humanos, da mesma forma que algumas mulheres se destacam em escrever porque são seres humanos. Os livros são dominados por temas masculinos por causa do sexismo.

    Muitos autores usam elementos de suas vidas para criar histórias. O conto A Residente soa absolutamente verossímil. Você teve alguma experiência como aquelas da história? Não! A maior parte de A Residente é puramente fictícia. Seus colegas artistas são basicamente inventados, embora haja detalhes que tirei de pessoas que eu conheci. Eu estive em residências, mas nunca assisti a uma residência como a descrita nessa história ou tive alguma dessas experiências em particular. Eu era uma escoteira quando criança, mas, novamente, as memórias de infância que ela descreve são fictícias.

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    O Corpo Dela e Outras Farras é uma coleção de contos, um gênero que geralmente é deixado de lado, mas no ano passado se destacou com o seu livro e Cat Person, publicado no The New Yorker. Você vê uma mudança na receptividade aos contos? Foi emocionante ver a atenção que Cat Person recebeu, a repercussão que teve. O Corpo Dela e Outras Farras também teve uma boa recepção. Mas os contos ainda são textos difíceis de publicar, pelo menos nos Estados Unidos. Eles geralmente não representam uma grande receita. Parece que não se aprende a ler contos, em especial os contemporâneos, na escola.

    Você está em uma residência artística agora. Em que está trabalhando? Em um livro de memórias chamado In the Dream House, sobre a violência doméstica em relacionamentos do mesmo sexo. Sai nos EUA pela Graywolf Press no outono de 2019.

    Seu avô nasceu em Cuba. Você ainda tem família e contatos lá? Eu fui para Cuba pela primeira vez em 2015. Ainda tenho muitos parentes na ilha, e foi muito bom conhecê-los e ver a casa em que meu avô cresceu. (Mesmo que o meu espanhol não seja muito bom – meu irmão ajudou a traduzir para mim). Eu amei a visita, mal posso esperar para voltar.

    Como você vê a relação atual entre Cuba e EUA? Fiquei feliz em ver a relação se soltar sob Obama, mas é claro que depois veio Trump e fez tudo dez vezes pior do que era antes. Donald Trump é um saco de bobagens, e toda ideia que sai de sua boca é horrível e idiota.

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    Você é uma grande fã de Cem Anos de Solidão. O que mais aprecia de literatura latino-americana? Sim. Também amo Isabel Allende, Roberto Bolaño, Armonia Somers, Juan Rulfo, Reinaldo Arenas, Jorge Luis Borges, Cristina Garcia, Valeria Luiselli… Do Brasil, conheço pouco, nunca estive aí, mas adoraria fazer uma visita.

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