Já faz muitos anos que os quadrinhos deixaram de ser território exclusivo de super-heróis e charges humorísticas. Com a popularização das chamadas graphic novels, as livrarias foram invadidas por volumosos livros em quadrinhos com tramas mais realistas e traços diferenciados – até mesmo experimentais. No Brasil, o fenômeno das graphic novels emplacou, de fato, há pouco tempo, com o surgimento de novos selos e editoras especializadas no gênero. É o caso da Quadrinhos na Cia. e da Barba Negra, selo da Leya que lança agora Lucille (544 páginas, 54,90 reais), quadrinho premiado do francês Ludovic Debeurme.
Debeurme, artista nascido em 1971, compõe em Lucille a trama de dois adolescentes desconfortáveis com sua vida solitária. Lucille e Arthur são jovens alienados da própria família, incapazes de manter um contato sincero com qualquer outro ser humano. Lucille sofre com um caso extremo de anorexia, enquanto Arthur precisa lidar com um pai alcóolatra e uma mãe relapsa. Um acidente trágico na vida de Arthur apenas piorará suas relações familiares.
Desde o início, fica claro que o enredo de Debeurme se inscreve naquilo que se costuma chamar de quadrinhos indies – rótulo que não mais se refere apenas a “independente” (o que assinalaria um meio de produção e publicação sem vínculos com grandes grupos editoriais), mas também a uma ligação com certa cultura alternativa. As famílias disfuncionais retratadas por Debeurme poderiam muito bem estar, por exemplo, em um filme de Todd Solondz, o cineasta responsável pelo tragicômico Felicidade. Nesse sentido, Lucille lembra muito outras graphic novels recentes, como Umbigo sem Fundo, de Dash Shaw, e Fun Home, de Alison Bechdel.
Mas o que, afinal, Lucille traz de novo e diferente para o gênero? Em primeiro lugar, o traço de Debeurme, com seus desenhos absurdamente simples, quase mínimos. Debeurme evita ao máximo criar cenários. Suas imagens estão destacadas do contexto, e parecem compostas de vários rabiscos curtos de caneta. As nuvens, por exemplo, são meros riscos horizontais, os mesmo riscos que são usados para representar ondas no mar e um assoalho de madeira. Em segundo lugar, há um completo abandono do lado “fofinho” da cultura dita indie. Os personagens não são figuras estranhas, mas simpáticas e legais como aqueles interpretados por Michael Cera em dezenas de filmes independentes, como Juno. Não, não há nada romântico na anorexia de Lucille ou na relação pai-filho abusiva da vida de Arthur.
Porém, Debeurme comete alguns deslizes em outros aspectos. Em uma das cenas, uma personagem encontra, acidentalmente, os pais fazendo sexo. Esse tipo de trauma freudiano usado para explicar a vida de uma personagem foi tão usado na ficção que já se tornou um clichê. O mesmo vale para algumas sequências de sonho – uma maneira banal de revelar o universo interno das pessoas. Por último, há uma mudança brusca no ritmo da narrativa nos capítulos finais, quando dezenas de eventos acontecem de forma apressada, diminuindo, assim, o impacto que poderiam ter no leitor se fossem melhores explorados.
Prós e contras somados, Lucille ainda é um exemplar interessante de graphic novel contemporânea. Pode-se arriscar dizer que os novos quadrinistas franceses, como Debeurme e Cyril Pedrosa, possuem uma sensibilidade muito peculiar, que alia crueza e lirismo. Esta mescla está claramente representada no mais recorrente símbolo em Lucille: seres humanos em corpos de abelhas, pessoas tão alheias do mundo que se consideram estrangeiras para si mesmas.