O presidente Jair Bolsonaro, que anda quietinho, quietinho, desde a prisão de Fabrício Queiroz, ex-faz-tudo de sua família, resolveu quebrar o silêncio para insultar os mais de 180 povos originários e 200 mil indígenas que vivem na Amazônia. Em uma live nesta quinta-feira, 23, Bolsonaro afirmou que são os índios que colocam fogo na floresta e geram parte do desmatamento e das queimadas que têm chamuscado a imagem do seu governo no exterior a ponto de grandes investigadores ameaçarem retaliação a uma economia já fragilizada pela pandemia.
“Pessoal, tem certas regiões aqui que o foco de incêndio existe, e vai existir todo o ano, que é o caboclo, é o índio que toca fogo. Se ele não tocar fogo, é a cultura dele, ele não vai ter o que comer no ano seguinte. Mais ainda, o tamanho da Amazônia é maior do que a Europa toda. Não tem como você fiscalizar”, afirmou o presidente, cometendo – além da leviandade de por essa conta nos indígenas – a gafe de que a maior floresta do mundo é do tamanho da Europa e não os reais cerca de 60% desta comparação.
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Clique e AssineSim, os indígenas fazem pequenas queimadas, com segurança, para organizar os seus roçados. Derrubam, queimam e plantam, em um processo secular chamado de “coivara”. Mas terras indígenas são, na verdade, as grandes barreiras contra o desmatamento, como já comprovou o Ibama (esvaziado na atual gestão) em seus planos estratégicos. Segundo análise do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a maior parte das queimadas do ano passado aconteceu em propriedades privadas médias e grandes (31%), em áreas devolutas – frequentemente griladas – (30%) e em assentamentos de reforma agrária (21%). Apenas 7% foram registradas em terras indígenas e na, imensa maioria das vezes, por invasores.
Na verdade, o fogo é usado como instrumento agropecuário por todos, de grandes produtores agrícolas e rurais a indígenas. Mas as etnias da Amazônia são aquelas que têm ajudado a manter a floresta de pé, num papel fundamental nos últimos 18 meses, quando o atual governo passou a proteger garimpeiros, caçadores, desmatadores e contraventores de toda sorte, o que tem elevado a devastação na Amazônia. Entre agosto de 2019 a julho de 2020, foram desmatados 7.115 km² de floresta. Mesmo antes de terminar o ciclo, o dado já é maior do que o do ano passado, ocasião em que foram destruídos 6.844 km² da mata, com enorme reação da comunidade internacional.
Bolsonaro usa sempre o mesmo expediente para tentar encobrir os erros de sua gestão. É a arte de, a partir de meias verdades, criar uma grande mentira para se eximir de responsabilidades. Faz agora com os indígenas. Mas fez também, por exemplo, na pandemia ao usar uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que ampliou o poder dos estados e municípios para propor ações restritivas à população na luta contra o coronavírus. Esta determinação, no entanto, não eliminou, em nenhum momento, o dever do governo federal de atuar e organizar as frentes de batalha. Com a narrativa, afirmou que os opositores e a imprensa não poderiam colocar as mortes pela Covid-19 em sua conta, mesmo que todos conheçam sua atuação irresponsável na tragédia sanitária.
Mas esse é só um exemplo, o mais recente, de um longo histórico que perpassa toda sua trajetória política. Há anos ele conta uma narrativa distorcida sobre ditadura militar (1964-1985). Na sua versão, o estado se defendeu de “comunistas perigosos” que teriam iniciado o processo de radicalização no país, quando foi o contrário: o Estado autoritário iniciou a violência contra opositores, a maioria deles enfileirados em grupos pacíficos contra os militares. Os movimentos de resistência armada nasceram somente após o regime militar prender, torturar e matar opositores sem julgamento.
A sua metralhadora de inverdades só mirou os indígenas agora porque a ineficácia do seu governo na área ambiental atingiu o bolso, onde Bolsonaro normalmente sente. Carta assinada por três dezenas de instituições financeiras que gerenciam mais de US$ 3 trilhões em ativos avisou que ou o governo contém o desmatamento na Amazônia, ou correrá o risco de viver “uma incerteza generalizada sobre as condições para investir ou fornecer serviços financeiros ao Brasil”. Depois de um ano e meio de governo anti meio ambiente e anti-indígena, vai ser difícil para o presidente convencer os indutores da economia de que os vilões são os povos originários, e não os grileiros, posseiros, madeireiros e caçadores que ele sempre fez vista grossa.