Provavelmente ninguém conseguiu apagar da visão a mesa suja de migalhas de pão e leite condensado, a entrevista na prancha de surfe, as cenas das lives, a sanfona tocando uma Ave Maria praticamente irreconhecível, e, na memória mais recente, a multidão vestindo camisetas da CBF segurando cartazes pedindo outside ministers. Mas o que, de fato, estas imagens podem nos dizer sobre a estética do atual governo, e por que isso importa em tempos de crise?
Falar em estética não é limitar a discussão aos princípios gestálticos. A estética é muito mais ampla e toca todo o universo da percepção. É a maneira como grupos constroem e veem o mundo, em torno do qual se formam discursos, símbolos, cores, formas e corpos. Por este motivo, as armas estéticas são mais potentes do que as armas de fogo, já que estão no campo da linguagem e do simbólico. Uma guerra pode não ser feita de palavras, por exemplo, mas são justamente os discursos e simbologias que levam à ela. Não é à toa que os artistas são os primeiros a serem censurados em qualquer governo anti-democrático.
As imagens são os principais meios de mediação com o cotidiano. A autora Giselle Beiguelman, autora do livro Política das Imagens, lançado recentemente pela editora UBU, defende que a cultura visual é indissociável da produção imagética das redes sociais. Não é só uma questão da quantidade massiva de bytes que são lançados na internet por segundo, em forma de selfies, fotografias diversas, curtidas e reações, mas é também uma mudança cultural e comportamental. É por meio das imagens que construímos boa parte de nossas narrativas e posicionamentos. Por isso, quando falamos em imagens também falamos sobre disputas de discursos.
Não é possível tratar desta discussão sem falar de Rancière, autor do livro A partilha do Sensível, e de outros que traçam um paralelo entre estética e política. Elas são formas que constituem a visibilidade dos acontecimentos, segundo o autor. A política é uma maneira de se colocar no mundo, de se posicionar como habitantes de um espaço comum e reivindicar a palavra. E a estética não é somente um reflexo da política, já que não há arte sem um discurso ou sem uma forma específica de visibilidade. Por um lado, ela mobiliza e produz coletivos e, por outro, demarca fronteiras. Nós versus eles.
E neste momento, no Brasil, há uma crise de representatividade política que, por consequência, gerou novos modelos estéticos, e vice-versa.
Quando criticamos as imagens aparentemente amadoras da extrema direita brasileira, não é um simples julgamento moral, porque o bonito e o feio são só perspectivas diferentes. O que estamos criticando realmente é como e porque estas simbologias existem, e para qual fim. As fotos compartilhadas no Whatsapp carregam mais do que formas desproporcionais e fotografias mal recortadas. Aquela imagem pixelada, com tons gritantes de verde e amarelo e dizeres grandes demais, que recebemos no grupo da família, do condomínio ou dos colegas de trabalho, é mais do que visualmente perturbadora.
Em um mundo de imagens HD, o aparente desligamento dos conceitos de design nas postagens bolsonaristas é uma escolha. O comportamento político se mostra em formas, e, neste caso, estas imagens são uma maneira de aproximação com o real, como se não houvesse interferência entre o “mito” e seus apoiadores. Os dispositivos móveis, providos de câmera e acesso à internet, geraram uma nova estética das imagens: por conta da efemeridade, o que importa não é tanto o enquadramento ou a qualidade visual. Nestes lugares virtuais, não é o regime estético das artes que flui, mas o do momentâneo. Os dispositivos de captação transformam-se em dispositivos de projeção do sujeito.
Mais do que isso, a imagem de Bolsonaro não fala com o eleitor, ela se torna um espelho. Quem o apoia, na verdade, apoia a si mesmo – o seguidor transforma-se em herói e em mito de sua própria fantasia. E mitos, por serem irracionais, não precisam fazer sentido para existir, basta corresponderem às necessidades de um grupo.
Se engana quem pensa que o desligamento dos padrões estéticos é original e não é muito bem pensado. O descompasso com as tendências visuais reflete o descompasso com as mudanças, a negação de novos estilos de vida e de progresso. Tudo que o atual governo defende. E o desligamento de padrões acaba criando um outro padrão. Mais uma vez, o nós versus eles.
E qual seria o melhor termo para definir a estética desta direita extremista? Há estudos que têm se debruçado sobre este tema, como o projeto de pesquisa Bolsonarismo: Novo Fascismo brasileiro. Para os pesquisadores, Kitsch é aquilo que tem pouca qualidade, padrões estéticos duvidosos, objetos vulgares e banais, exagero e superficialidade. Desde o século XIX, foi utilizado para definir o empobrecimento da experiência estética, a rejeição à intelectualidade artística e a valorização do status do indivíduo que consome um objeto.
Mais do que uma aproximação com a arte popular, é a tentativa de alcançar prestígio social por meio do consumo. O kitsch é uma estética sentimental, que gera conforto, mas nunca instigação. Não é feita para fazer pensar ou refletir.
Todo mundo tem um objeto kitsch em casa, e não há problema algum nisso. Aquele souvenir da sua última viagem, o pinguim em cima da geladeira, o vaso de abacaxi ou os famosos anões de jardim, rodeando a coitada Branca de neve com o rosto um pouco branco demais pela exposição às intempéries. Estes objetos não carregam em si uma coisa negativa, eles possuem até um peso sentimental. E não é porque você tem algum desses objetos em casa que se alinha à extrema direita – não precisa sair correndo para jogar as flores de plástico no lixo.
Da mesma forma, a discussão não está centrada no paletó com a camiseta do time de futebol – apesar de ser visualmente desagradável. O problema é quando este conceito é utilizado para gerar comoção e encobrir atitudes irracionais e vulgares. Ou mais, quando se utiliza dos símbolos nacionais e da própria noção de patriotismo para defender uma figura autoritária, ignorante e desqualificada.
* Gabriela Koentopp é arquiteta, urbanista pela UFPR e mestranda pelo IAU-USP. Concentra suas pesquisas na área de Arte, Cidade e Cultura. Fundadora do Studio Mees, atuou em exposições no MON, MAC-PR e Maria Antonia-USP. É colunista de arte contemporânea no jornal Plural (e espero que sempre colabore com a coluna)