Água a R$ 93: o drama de uma fake news na catástrofe do Litoral Norte
Boato espalhou-se feito um rastilho de pólvora em São Sebastião, mesmo sem qualquer comprovação do suposto superfaturamento de preços
Na esteira dos estragos causados pelas fortes chuvas no litoral norte de São Paulo, um fato causou indignação e revolta nas redes — mercados da Vila e Barra do Sahy, em São Sebastião, estariam vendendo água mineral a 93 reais o litro após a tragédia. A suposta informação começou a circular em grupos de WhatsApp de moradores, que também passaram a fazer relatos aos dezenas de veículos de comunicação que, desde os temporais, estão no local.
O caso ganhou maior dimensão quando um repórter da Rede Globo chegou a chorar no ar contando a mesma história. Com a repercussão, o Procon-SP (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) e as polícias Civil e Militar foram acionados. Até agora, no entanto, não há sequer uma prova a respeito do tal litro de água que estaria sendo vendido a 93 reais. Pelo contrário, cada vez fica mais claro que a história é uma tremenda fake news. Mas o estrago já estava causado.
Do dia para a noite, uma das comerciantes mais antigas da região viu sua vida virar de cabeça para baixo. Maria Isabel Estavski, 70 anos, é proprietária de cinco mercadinhos — dois na Vila Sahy, localizada na encosta e ponto mais castigado pelas chuvas — um na Barra do Sahy, área mais “rica” e onde ficam os principais condomínios e casas de veraneio — e outros dois em praias vizinhas. Um dos comércios de Isabel na Vila Sahy foi o epicentro das mentiras disseminadas. O ponto ficou fechado nos dias do temporal e, após pressão de moradores — que se queixavam de que outros comércios locais haviam ficado desabastecidos –, decidiu reabrir as portas em 21 de fevereiro, terça-feira de carnaval. Nesse momento, no entanto, já circulavam no boca a boca os boatos: “O mercado da Isabel está vendendo água a 93 reais e macarrão a 20 reais”. Moradores gravaram vídeos em frente ao local e chegaram a ameaçar funcionários que tentavam, em meio à lama, restabelecer as atividades. (Assista abaixo)
De lá para cá, Isabel e a família — que afirmam não terem aumentado os preços em nenhum momento — queixam-se de estarem sofrendo todo o tipo de hostilidades, que vão desde ofensas racistas contra a comerciante, até o cancelamento de contratos e ameças de linchamento e de morte. Com os acontecimentos, além da segurança pessoal de Isabel, os filhos dela temem agora pela falência dos negócios, mantidos pela família há mais de trinta anos.
Filha de empregada doméstica, Maria Isabel Estavski nasceu em Ilhéus, no sul da Bahia, e mudou-se para São Paulo com a família na adolescência. Na capital, conheceu seu marido, José Estavski — que, à época, trabalhava como empreiteiro e acabou conseguindo emprego nas construções do litoral –, com quem teve quatro filhos. Após revezes nos negócios, a família mudou-se para São Sebastião, onde conseguiu se reerguer. Alguns anos depois, José foi brutalmente assassinado e coube a Maria Isabel o sustento integral da família. Com tino para o comércio, ao longo dos anos foi adquirindo pequenos negócios e, hoje, é proprietária dos cinco mercadinhos.
Após a repercussão, a comerciante passou a gravar vídeos se defendendo dos ataques sobre os falsos preços dos produtos. Entre as mentiras divulgadas, espalhou-se inclusive que ela estava fora do Brasil. (Assista abaixo)
Por ora, o mercadinho que foi alvo das fake news está de portas cerradas — e sem previsão de reabertura. As outras unidades estão funcionando, mas o receio de boicote e de novos ataques põe em xeque o futuro dos negócios. Após as ofensas, Isabel fez um boletim de ocorrência por injúria e, nesta semana, deve sair o laudo do Procon-SP atestando se houve ou não abuso do poder econômico pelo suposto superfaturamento dos produtos. Mesmo com o esclarecimento do caso, os prejuízos provocados pela fake news da água a 93 reais dificilmente serão reparados.