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Professor, advogado e militante do movimento negro, ele é o reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, instituição pioneira de ensino no Brasil que ajudou a fundar em 2004.
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Somos todos neorracistas negros e o racismo branco vai ter que nos engolir

Estamos diante de um vale tudo para colocar e manter de pé argumentos e discursos tortuosos e vazios de racionalidade, sem qualquer prova além de ilações

Por José Vicente
20 jan 2022, 18h21

Nos últimos vinte anos, no Brasil, nas discussões e construções sobre a gênese, os efeitos e as medidas para combater os impactos do racismo contra os negros, os intelectuais brancos tem apresentando de forma enfática suas opiniões, argumentos, divergências, e mesmo debatido e se posicionado frontal, ostensiva e desafiadoramente a favor de suas posições. Tratando-se de tema sensível, polêmico e carregado de paixões, como nos demais outros temas conturbados e conflituosos, o debate racial é intensamente polarizado e alcança altas octanagens, com ilações e escaramuças de toda natureza.

No debate das cotas nas universidades públicas, a partir de 2002, por exemplo, mais de uma centena de intelectuais brancos contrários às cotas assinaram e publicaram manifestos pagos em revistas e jornais, e muitos deles instalado no grupo de opinião – e também nos grupos de controle da mídia – denominado “Não somos racistas”, produziram pesquisas, escreveram e publicaram livros e inundaram os espaços da mídia com seus argumentos e contrariedades, no que foram acompanhados e apoiados pela maioria dos veículos de comunicação. Depois, a partir de suas áreas de influência estimularam e persuadiram grande parte dos advogados, jornalistas, políticos, intelectuais e pessoas comuns que impetraram mais de quinhentos mandados de segurança e várias ações de inconstitucionalidade nos tribunais e no Supremo Tribunal Federal, contra as cotas nas universidades.

Em regra, esses intelectuais reconheciam tão somente a centralidade da discriminação advinda das desigualdades sociais e questionavam aquelas de fundo racial, com o argumento de que raças não existem. Por isso, contestavam as medidas para combater e reparar seus efeitos nocivos fundeados nas cotas raciais, afirmando que elas agridem o principio da igualdade e da meritocracia e retiram a neutralidade do estado. Defendiam com mais ênfase medidas universais e generalistas. Do tipo, primeiro fazer o bolo crescer; depois servir a todos.

Do outro lado, os intelectuais negros com apoio inaudito de poucos brancos, calejados pela memória do racismo da escravidão e afligidos pelo racismo pós-abolição, destacavam que as distorções promovidas pelo racismo conformam injustiças que agridem a igualdade e equidade de oportunidades, promovendo um apartheid social, a partir da distinção pela cor e raça, vedada pela constituição. Por isso, o reequilíbrio necessário somente seria alcançado através de medidas afirmativas, entre elas as cotas. Isto é, vamos fazer o bolo e vamos todos comendo pelo caminho.

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Debate público finalizado, argumentos e objetos estruturados, como manda lei e determina os primados da democracia, o povo, através de seus representantes decidiu e aprovou as politicas afirmativas e as cotas nas universidades e serviço publico para negros. Os tribunais indeferiram todos os mandados de segurança e a Suprema julgou e decretou constitucionais as medidas afirmativas e as cotas. E, adicionalmente, implantou-a nas carreiras de juízes, nos concursos do cartório e nas vagas de estágio da estrutura da justiça.

No momento em que o país começa a debruçar sobre a discussão da renovação das leis de Cotas nas universidades, em 2022, e na Administração Pública, em 2024, aos poucos muitos daqueles intelectuais retornaram a carga, agora, brandindo argumentos e teorias que pretendem inovadoras, de renovada consistência e carecedora de crédito por debruçarem sobre pontos obscuros da questão.

Essas então novas teses tem afirmado que incluir pretos e pardos na categoria negros conforme procede o governo e suas agencias de produção de dados e formulação de politicas como, por exemplo, IBGE e IPEA, RAIS e CAGED, a partir da autodeclaração, terminam por cooptar os pardos na construção de uma maioria social e política artificial e estimula uma ideologia da diferença, que, além de robustecer o identitarismo, consequentemente, fortalece o molduramento de uma supremacia racial negra, colocando em perigo a ordem, a paz social a democracia e todos demais objetivos da república.

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Os defensores dessa tese tem tido acolhimento e reiteradamente publicam suas teses e opiniões principalmente no jornal Folha de São Paulo. Num texto publicado nesse jornal, no dia 16 passado, o poeta e antropólogo Francisco Rizério, notório adversário das cotas, apresenta e defende a ideia de que no Brasil e no exterior está em curso um projeto de supremacia de poder negro lastreado no neorracismo, onde, a partir do fortalecimento da identidade e estimulado pelos discursos e posições antirracistas de poderosas instituições negras, os negros superaram a barreira da falta de poder politico e econômico, e alcançaram condições de promover o racismo reverso contra os brancos, colocando em curso a construção da supremacia racial, do separatismo, e a preparação, para no futuro, conforme testemunho da historia onde o opressor do passado é o oprimido do presente, tomar o poder. Tudo isso com a complacência das universidades, mídia e partidos políticos de esquerda.

Apresenta como evidencia da sua hipótese o fortalecimento dos discursos e posicionamentos antirracistas das instituições negras e um conjunto de ocorrências pontualizadas, nas últimas décadas, quando negros, no exterior utilizaram imprecações racistas em escritos, discursos, manifestações politicas, e mesmo em ocorrências delituosas contra brancos, judeus, asiáticos.

No Brasil, afirma que as evidências estão caracterizadas pelo fato de que a organização Frente Negra Brasileira, há 87 anos, manifestou apreço por Hitler, apoiou Getúlio Vargas, e seu líder Abdias do Nascimento estivera filiado ao movimento integralista. E que, na atualidade elas se manifestam pela movimentação de pastores evangélicos negros em busca do poder.

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Como se pode ver, não é preciso muito esforço para contrapor os argumentos do autor, bastando anotar a impossibilidade de relacionar causa e efeito em fatos tão dispares, de naturezas distintas e ocorridos em épocas tão distantes, E, principalmente estabelecer um determinismo histórico a partir de realidades e culturas totalmente diferentes. Seguramente, ninguém no Brasil conhece existência de uma Klu Klux Klan de negros ou de brancos e nunca soube de ocorrência onde negros tenham agredido estabelecimentos de japoneses, chineses, coreanos ou tenham atacados sinagogas de judeus, vituperando discursos racistas, de forma organizada, coletiva e com reincidência.

Justamente porque nunca houve um racismo de estado como nos Estados Unidos e África do sul, o debate racial brasileiro é até grosseiro e desrespeitoso, mas nunca foi além do campo das ideias. Observando por oportuno, que a Frente Negra foi extinta pelo próprio Getúlio Vargas, em 1937 quando se transformou em partido politico, e que, uma simples espiadela nas redes sociais e nos julgados dos tribunais é suficiente para apreender o quanto é o negro e não o branco a maior vítima das agressões raciais discursivas, o país.

Por outro lado, no Brasil, como é sabido e publicizado, a mídia em geral, inclusive naquela em que escreveu seu artigo, sempre foi contrária às cotas e expressaram essa posição publicamente quando não operaram em seu desfavor. Nossas universidades, outrossim, sempre foram complacentes e indiferentes qualquer debate e discussão sobre racismo contra negros e seus efeitos e nunca construíram uma medida sequer em seu desfavor antes e depois das cotas. Basta verificar que mesmo depois de vinte anos, as cotas não foram além do corpo discente.

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Importante registrar, que o consenso politico, cientifico e social, da existência e operação do racismo independente de raça, da impossibilidade do racismo reverso sem poder politico e econômico; da necessidade, legalidade e justiça de construir a igualdade a partir de combate às distorções produzidas pelo racismo, e, pela afirmação do direito da identidade, estão avassaladoramente recepcionados, consolidados, acordados e afirmados nos documentos das três conferências mundiais contra o racismo das quais nosso país foi participante e signatário.

No Brasil, nossa Constituição Federal acolhe integralmente estes princípios e fundamentos. Reconhece e denuncia o racismo como crime imprescritível e inafiançável e autoriza as ações de igualização para combater distorções baseadas na raça ou cor da pele. Esses princípios, direitos e fundamentos foram reconhecidos e acolhidos mesmo pela ditadura da direita, em 1968, e, pelo governo de Jair Bolsonaro, em 2022, ao sancionar, respectivamente a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial e a Convenção Interamericana contra racismo e discriminação racial que obriga o combate ao racismo e autoriza e estimula a promoção de politicas afirmativas e as cotas. Se isso é obra, estratégia e propósito de hegemonia racial: somos todos neorracistas negros.

Como podemos ver, mais do que debate de ideias estamos diante de um vale tudo para colocar e manter de pé argumentos e discursos tortuosos e vazios de racionalidade, sem qualquer prova além de ilações e insinuações contraditórias e inconsistentes. Como falso profeta e socorrendo do negacionismo, o autor de forma desleal e desonesta, procura denunciar uma mendaz e pueril teoria da conspiração, utilizando como método a dissimulação e o ardil. Primeiro para subverter e desfigurar os fatos e alcançar artificiosamente coerência e razão, e, depois de forma maquiavélica e irresponsável, para acusar, denunciar, plantar dúvidas, semear discórdia, incitar e arremeter cidadãos brancos, negros, judeus e asiáticos, brasileiros, uns contra os outros.

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Se esse é o objetivo e se essa é a finalidade, e os fatos os comprovam, atitude dessa natureza além de repulsivas constituem injustificável violência politica psicológica e agridem e violam a dignidade dos negros e de toda a coletividade. São imorais, quando não criminosas.

Logo, a pergunta que sobressai é como justificar e defender liberdade de expressão quando o discurso é mendaz, desvirtua a verdade, agride a honra coletiva e estimula a discórdia e o conflito entre as pessoas?

E, principalmente, porque os veículos de comunicação que se apresentam como plurais e compromissados com os valores democráticos e da dignidade humanam recepcionam e dão guarida e publicidade a esses tipos de discursos e esses tipos de autores ao arrepio das regras do bom jornalismo; da busca da verdade e da correta informação, e do respeito e consideração aos seus leitores e publico em geral?

Por que ali eles se repetem à exaustão e em todas as direções? Porque só contra os negros? Afinal, que objetivos os movem? Quais são seus interesses? Quais são os princípios que realmente importam? Quis são os valores que, efetivamente os movem?

O debate da renovação das cotas ainda está começando, mas é possível antever o calibre dos ardis e desonestidade da artilharia do velho, ultrapassado e desleal racismo branco. Cotas Sim.

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