Seguramente, fui um dos negros que mais escreveu artigos com frequência na Folha de S. Paulo, nos últimos vinte anos. Foram tantos, que, reunidos, permitiram transformar na minha primeira obra literária: um livro de 150 páginas, denominado Discursos Afirmativos. Essa condição de articulista livre permitiu da mesma forma a honra de uma convivência rica, respeitosa, crítica e construtiva com o jornalista Otávio Frias.
Nas dezenas de encontros e visitas à Folha de S.Paulo sempre frisava que seu prestigioso jornal continuava falhando nos propósitos de ser um veículo totalmente democrático e plural, enquanto os negros estivessem de fora das redações, da gestão, das primeiras páginas, e, sobretudo, do espaço de articulistas. Tentei de todas as formas convencê-lo do caráter transformativo das cotas para negros nas universidades e serviço público federal, e, confesso, não fui bem-sucedido, frente ao seu posicionamento convicto de defesa das cotas sociais.
Ainda, assim, jamais faltou o apoio e destaques para todas as realizações da Universidade Negra Zumbi dos Palmares. Nela, ele participou de várias atividades, e com ela realizamos atividades conjuntas, inclusive discussão sobre racismo e mercado de trabalho, na sede do prestigioso jornal. Pela escolha fabulosa de Flávia Lima, jornalista e mulher negra como ombudsman, concedemos-lhe o Troféu Raça Negra.
Tive da mesma forma, o prazer e a honra de ser consultado, ser ouvido, e mesmo participar de importantes momentos de transformação do posicionamento do jornal Folha de S.Paulo em relação ao racismo, ao combate à discriminação contra os negros e à valorização da diversidade racial nos meios de comunicação e na sociedade, em geral, ao longo dos anos. Fruto dessa nova disposição e legado pós-morte, vi os negros chegarem às primeiras páginas, vi a primeira jornalista negra ombudsman, vi os números de articulistas saltarem de nenhum para quase dez nos últimos dois anos, vi a criação de um caderno de diversidade, vi a criação de um Índice de Equidade Racial e vi o tema e os negros de todas as áreas serem tratados com dignidade e respeito em todas os cadernos.
O convite e a nomeação da filósofa Sueli Carneiro e do professor e jurista Thiago Amparo, duas importantíssimas personalidades negras nacionais, para integrar seu conselho editorial foi o marco e a chave de ouro dessa construção longínqua, e que confirmava a mudança pioneira e histórica da aplicação do discurso e da prática do valor da pluralidade e da diversidade racial no seio da comunicação jornalística brasileira.
Pela primeira vez na história do jornalismo havíamos chegado tão longe e pela primeira vez críamos um paradigma com potência suficiente para revolucionar o setor e, a partir dele, segmentos importantes da sociedade, na direção da consolidação da diversidade racial e participação e valorização dos negros na formação da opinião social e da sociedade como um todo.
Todavia, entre esse acontecimento glorioso de mudança e transformação, em curso, e um texto grosseiro, desrespeitoso e com requintes de hostilização racista de um também articulista do veículo, a Folha preferiu lavar as mãos no silêncio e na neutralidade, quando tinha diante de si a oportunidade histórica de confirmar definitivamente os valores que ela mesma acabara de acolher e anunciar com pompa e circunstância a seus leitores e admiradores: a não concessão às agressões do racismo, a valorização da diversidade racial como expressão da pluralidade e da democratização dos pontos de vistas, através da opinião do negro na opinião do jornal. E, logo, a defesa inconteste da dignidade da pessoa humana.
Ao se calar, não apresentar e justificar seus motivos – a nosso ver injustificáveis –, o jornal, ao optar por considerar o texto ofensivo e racista, como intocável e inquestionável manifestação da liberdade de expressão, corre o risco de parar a revolução a partir da relativização dos negacionismos do novo normal, e principalmente com os valores inegociáveis da dignidade da pessoa humana. De quebra, coloca em questão a lisura do seu gesto de convidar as duas personalidades negras para seu conselho editorial.
Se a atitude do pedido de desligamento do conselho editorial da Folha feito pela filósofa Sueli Carneiro é daqueles acontecimentos que enche o peito de qualquer indivíduo de orgulho, ao mesmo tempo em que fortalece nossa convicção sobre a grandeza e imperatividade da ética, nos deixa também perturbados com o silencio sepulcral do jornal e de toda sociedade.
Continuo respeitando e reconhecendo as grandiosas realizações e o grande esforço de superação da Folha, e até espero uma condução e solução correta e justa em relação ao ocorrido. Da mesma forma, torço por um final feliz que evite a saída também de Thiago Amparo e permita o alcance integral da como disse revolução. Mas, concordo em gênero e grau com Sueli: com o racismo e racistas de qualquer coloração e natureza não pode haver concessão. E, nem tampouco silêncio.