Foi de Arthur Lira, presidente da Câmara, o aval para andamento de uma proposta de emenda constitucional que permite ao Congresso julgar e suspender decisões do Supremo Tribunal Federal.
O deputado Lira pode ser criticado por quase tudo, só não pode ser acusado de ignorância da Constituição.
Sob a sua liderança, a Carta de 1988 foi convertida numa espécie de periódico. Tem sido republicada a cada 40 dias com mudanças estruturais.
Contam-se 26 alterações no texto constitucional desde que chegou ao comando da Câmara, há três anos e meio. Nem todas as emendas, por óbvio, foram iniciativa dos deputados, boa parte teve origem no governo e no Senado. Mas em todas Lira foi decisivo — ele tem poder sobre a pauta do plenário e das comissões, além do mando no “colégio de líderes”, o clube fechado onde as decisões são tomadas.
Na prática, o que a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara fez, nesta quarta-feira (9/10), foi declarar admissível para votação a ideia de transformar o Congresso no equivalente a um poder moderador da República.
Levou-se ao extremo a ideia de que é possível desconhecer aquilo que a Constituição veta de forma objetiva: (Artigo 60) – “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I. a forma federativa de Estado; II. o voto direto, secreto, universal e periódico; III. a separação dos Poderes; IV. os direitos e garantias individuais.” No caso, trata-se da separação dos Poderes.
Como Lira sabe, não existe vírgula ao acaso no texto constitucional. A proibição, na forma de cláusula pétrea, de decisão parlamentar em qualquer nível sobre a autonomia dos Poderes tem raízes na traumática experiência do Legislativo durante a ditadura de Getúlio Vargas.
No próximo 10 de novembro completa-se 87 anos da edição da Constituição do Estado Novo, usada por Vargas para impor o regime ditatorial, com suspensão de direitos civis, cassações e prisões de parlamentares e juízes, além do fechamento das instituições.
O texto foi preparado durante meses pelo jurista Francisco Campos, o Chico Ciência de Dores do Indaiá (MG). Entre outras coisas, estabelecia que, se e quando retomadas as atividades, o Judiciário estaria limitado até para questionar atos presidenciais: “Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República.”
Lira costuma lembrar que é um democrata. Restariam, naturalmente, dúvidas sobre sua motivação para dar andamento a um projeto reconhecido como inconstitucional.
Outro Chico, de sobrenome Alencar, historiador e deputado federal pelo Psol do Rio, arriscou um palpite no plenário da Comissão de Constituição e Justiça: o motivo de Lira é monetário, os recursos de emendas parlamentares ao orçamento bloqueados pelo Supremo por absoluta falta de transparência nas transferências à prefeituras.
“O presidente Arthur Lira”, disse, “colocou a proposta na pauta e abriu a possibilidade de discussão nesta comissão por mero espírito de vingança, em função da decisão do ministro [do Supremo] Flávio Dino sobre a farra das emendas dos parlamentares, do orçamento secreto, da fidelização de currais eleitorais, da corrupção eleitoral que se verificou agora, na eleição municipal.”
Acrescentou: “O que essa proposta de emenda constitucional pretende é uma interferência absolutamente indevida do Poder Legislativo, com maioria eventual, no Poder Judiciário. Independência, harmonia e diálogo entre os Três Poderes ficam jogados de lado. É, sim, revanche, vingança, um modo de má prática legislativa de reagir a um Judiciário que, mesmo cometendo equívocos aqui e ali, tem decisões, inclusive, monocráticas muito corretas, como, por exemplo, esse freio de arrumação na farra das emendas parlamentares.”
Por essa interpretação, predominante entre deputados, Lira usou a Constituição numa barganha na Câmara para ofensiva contra o STF. Deu sinal verde ao projeto de um grupo parlamentar minoritário, aparentemente interessado em conflito institucional, para pressionar o STF a liberar os recursos bloqueados, e ampliar sua influência na própria sucessão na presidência da Câmara, em fevereiro.
Por essa lógica, Lira não deixou de ser um democrata — seria apenas uma questão de dinheiro.