Eleitores reduziram Bolsonaro à irrelevância na gestão da pandemia
Como a prioridade nunca foi a política de Saúde, mas a política na Saúde, governo se desconectou da sociedade: 80% já anunciam que pretendem vacinar filhos
O Ministério da Saúde atravessou os últimos 21 meses de pandemia operando num sistema de concessão de favores presidenciais aos ministros e cobranças de obrigações para com presidente. A prioridade nunca foi a política de Saúde, mas a política na Saúde.
Ano passado, o capitão Jair Bolsonaro conseguiu do general Eduardo Pazuello algo raro até na hierarquia da caserna — a submissão extrema, sem limites.
Quando Pazuello se tornou politicamente inútil, ele procurou um substituto. Era março e o médico paraibano Queiroga apareceu para uma audiência. Entrou no Palácio do Planalto como candidato de líderes do Centrão para uma diretoria na agência reguladora (ANS), onde se formatam os negócios das operadoras de planos de saúde. Saiu ministro da Saúde.
O enredo prosseguiu inalterado. Bolsonaro, Pazuello e Queiroga transformaram o Ministério da Saúde num centro operacional de interesses pessoais, políticos e eleitorais.
Misturaram atribuições das funções públicas com prioridades privadas e impuseram a lógica eleitoreira como critério de arbitragem na segurança sanitária nacional.
O resultado do ativismo político na Saúde está nas mais de 618 mil mortes na contagem até a noite de ontem — muitas evitáveis, segundo a comunidade científica.
Da cloroquina à máscara, da compra de vacinas ao plano de imunização de crianças, estabeleceram a negação da ciência como premissa do planejamento da política de saúde pública, conforme já demonstrou a CPI da Pandemia.
Além da ampliação dos cemitérios, o desgoverno segue provocando consequências políticas.
Uma delas é o conflito federativo sem precedentes. No impasse, Estados, Municípios e o Congresso passaram a recorrer ao Judiciário, que tornou rotineira a arbitragem de questões relevantes da Saúde.
Na prática, estabeleceu-se a incompetência do governo federal cumprir a obrigação constitucional de defender a segurança sanitária dos brasileiros.
Antes da ceia de Natal, por exemplo, governos estaduais e prefeituras confrontaram a exigência de prescrição médica para vacinação de crianças de 5 a 11 anos.
Ao mesmo tempo, o juiz Ricardo Lewandowski, do Supremo, mandou o governo explicar quais são as razões científicas para esse tipo de imposição. E outro juiz, Alexandre de Moraes, deu 48 horas a Bolsonaro para se defender de um pedido de investigação por intimidação pública dos servidores da Anvisa que aprovaram a vacinação de crianças.
Um outro efeito notável do desgoverno é a desconexão com sociedade. Bolsonaro insiste em usar a pandemia como instrumento eleitoral, mas, ironicamente, ampla maioria do eleitorado (60%) não confia no que diz o presidente-candidato, e se recusa a segui-lo na emergência sanitária. Ou seja, os eleitores não apenas desconfiam como rejeitam a liderança do chefe de governo na pandemia.
Desde o início da crise pandêmica, o Palácio do Planalto foi inundado com pesquisas de opinião pública, algumas diárias, mostrando uma sociedade naturalmente refém do medo da morte e esperançosa na vacina contra a Covid-19.
Bolsonaro propagandeava cloroquina para alegria dos fabricantes de derivados, cujos lucros subiram até 730%, enquanto nove em cada dez brasileiros atravessavam o último ano e meio declarando-se ansiosos para receber vacina no braço, mostra o histórico de pesquisas do Datafolha, Ipec, Ipespe e outros institutos.
Esse comportamento se repete, agora, em relação à vacinação de crianças. Mais de 80% anunciam em pesquisas, como as da Fiocruz, a determinação de resguardar os filhos do vírus.
No receio da morte e na proteção da família, os eleitores simplesmente reduziram Bolsonaro à irrelevância na gestão da pandemia.
Essa liquefação da governança, além da mortandade, tem um alto custo para o Estado e suas instituições. Esse é um lado da moeda. Outro é a chance de reconstrução da política setorial e do Sistema Único de Saúde.
A temporada eleitoral de 2022 é momento singular para esse debate — boa oportunidade para candidatos e partidos se conectarem à realidade do país que pretendem governar.