A urna corrige o mercado, e o mercado, por sua vez, limita a urna — costuma dizer o ex-ministro Delfim Netto, um dos mais influentes políticos das últimas seis décadas.
Ontem, foi um dia em que a urna começou corrigir o mercado.
Jair Bolsonaro anunciou estar “praticamente acertado” um aumento de “um pouco mais de 50%, para trezentos reais” no valor do pagamento do programa Bolsa Família.
Vai ser a partir de dezembro, disse. Pelo calendário, 11 meses antes da eleição presidencial.
Existem 14 milhões de pessoas pobres — todas com título de eleitor — inscritas no Bolsa Família.
No original, é obra política do governo Lula, que em 2003 optou por abandonar o Fome Zero e reuniu os cadastros de programas sociais construídos pelos antecessores Fernando Henrique Cardoso e José Sarney.
Bolsonaro justificou o aumento pelo acelerado e persistente o avanço da inflação nos bolsos dos pobres — isto é, oito de cada dez eleitores: a inflação da cesta básica de alimentos ficou “em torno de 14%”, e, ressaltou, alguns itens “chegaram a subir 50%”.
Por isso, os beneficiários do Bolsa Família vão “sair sair de média de cento e noventa reais [por mês], para um pouco mais de 50%, para trezentos reais.”
Vai custar cerca de R$ 35 bilhões. Atônitos, economistas do governo dizem que, à princípio, não haveria como pagar essa conta dentro do orçamento do ano eleitoral de 2022, por causa do teto de gastos, etc.
Realmente, não é pouco dinheiro num país em agonia fiscal e com a economia combalida, sem perspectiva de recuperação efetiva porque na pandemia o governo preferiu investir em cloroquina e adiou a compra de vacina. Porém, o problema não é econométrico, é político. E os economistas do governo têm seis meses para encontrar a fórmula orçamentária.
É bem mais tempo, por exemplo, do que tiveram para enquadrar no “teto de gastos” os R$ 17,5 bilhões de emendas parlamentares que os líderes do Centrão agruparam numa espécie de orçamento paralelo.
Eles passaram a decidir os onde recursos federais serão aplicados e em quais projetos, mas sem a necessária transparência, o que motivou investigação em andamento no Supremo.
De um lado, o anúncio de Bolsonaro é boa notícia para uma fatia (14 milhões) da maioria do eleitorado, empobrecido numa conjuntura em que a alta de preços corrói a renda dos mais pobres numa velocidade muito superior à dos ricos.
De outro, confirma o erro por ele cometido ao mandar o governo sair de um investimento social de R$ 300 bilhões na pandemia, durante o ano passado, para o zero absoluto no começo deste ano.
E pior: sem vacinas e sem previsão de dinheiro para ações da Saúde na pandemia no Orçamento da União, que só foi aprovado no final de março.
Tudo indica que a dura realidade à frente do candidato à reeleição se impôs ao discurso de entretenimento radical e fantasioso do presidente.
O efeito urna tende a provocar alguma redução da pobreza no próximo ano eleitoral.
O pesquisador Marcelo Neri, da FGV-Social, mapeou como isso se repete há sete eleições, desde 1986. Nos últimos 35 anos a pobreza caiu no ciclo eleitoral e subiu no ano seguinte — a exceção foi em 2007.
Sem política social consistente, a instabilidade é frequente. Depois da eleição, o mercado começa a limitar a urna.