Congresso se mobiliza para manter Forças Armadas longe da política
A reação ganhou forma ontem, quando 180 deputados garantiram a tramitação de emenda constitucional proibindo militares da ativa em cargos públicos
Está em curso uma inédita mobilização civil para manter as Forças Armadas longe da política partidária.
Ela ganhou formato legislativo ontem, quando 180 deputados federais garantiram a tramitação de um projeto de emenda constitucional (PEC nº 21) apresentado no ano passado por Perpétua Almeida, deputada do Partido Comunista do Brasil do Acre.
Pelo texto, militares na ativa ficariam proibidos de ocupar cargos de natureza civil nas administrações federal, estaduais e municipais. Estão previstas duas exceções:
a) se tiver menos de dez anos de serviço no Exército, na Marinha e na Aeronáutica deverá afastar-se da carreira;
b) se tiver mais de uma década passa à inatividade, automaticamente, no dia da posse.
Um ano atrás, Perpétua Almeida começou a pedir apoio à tramitação do projeto. Isso ocorreu pouco depois do comício de Jair Bolsonaro no portão do Quartel-General do Exército, em Brasília, para uma plateia de seguidores entusiasmados com a ideia de uma viagem ao tempo da ditadura dos generais, desta vez sob comando de um ex-capitão.
A percepção de um amálgama dos interesses do governo com os das instituições militares já se refletia em pesquisas de opinião, com redução da confiança nas Forças Armadas. Exemplo: em 29 meses de governo com moldura militarista, a credibilidade pública nas instituições militares caiu doze pontos— de 70% para 58%, segundo dados da XP/Ipespe em junho.
A deputada preparou o texto da emenda constitucional e, na justificativa, mencionou o general Mark Milley, chefe do Estado Maior Conjunto dos Estados Unidos, que naquele início de junho pedira desculpas por ter participado da caminhada do então presidente Donald Trump para encenar uma fotografia de campanha à reeleição na porta de uma igreja próxima à Casa Branca.
Milley lamentou-se, em público: “Como oficial da ativa, foi um erro com o qual aprendi, e espero sinceramente que todos nós aprendamos com ele. Nós que usamos as insígnias de nossa nação, que viemos do povo, devemos sustentar o princípio de Forças Armadas apolíticas, que tem raízes firmes na base da nossa República.”
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Na Câmara, ela precisava de 171 assinaturas (apoio de 33% dos 513 deputados), mínimo exigido para se iniciar a discussão sobre uma emenda constitucional. Perpétua Almeida levou quase nove meses para reunir duas dezenas.
No último maio, o general de Exército Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde sob investigação na CPI da Pandemia, subiu num palanque e discursou em comício da campanha de reeleição de Jair Bolsonaro, no Rio.
Exibindo o poder de chefe constitucional das Forças Armadas, em público e em privado, o presidente pressionou o comando do Exército a “perdoar” Pazuello. Conseguiu. Mas, ao impedir a punição do general, que empregou numa assessoria no palácio, Bolsonaro acrescentou uma novidade às suas relações com o antigo esteio militar: introduziu o vírus da anarquia nos quartéis.
Semana passada, a estridência fardada impôs novo tom à crise. A pretexto de responder críticas do presidente da CPI da Pandemia, Omar Aziz, senador do PSD do Amazonas, o ministro da Defesa Walter Braga Netto combinou com Bolsonaro uma resposta contundente ao Senado, que ele assinou junto com os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica.
Os quatro reivindicaram para as Forças Armadas um papel de moderador na política interna — “ciosas de se constituírem fator essencial da estabilidade do País”, escreveram. Isso não está previsto na Constituição, mas é argumento esgrimido por alguns aliados de Bolsonaro com base no histórico de seis golpes militares desde a derrubada da monarquia — dois em 1891, outros em 1930, 1937, 1945 e 1964, sem contar as rebeliões ou quarteladas.
Braga Netto havia chefiado a Casa Civil da Presidência antes de estacionar na Defesa. Entrou no governo como general da ativa e passou à reserva dez dias depois. Durante quase um ano coordenou as desventuras do governo Bolsonaro na gestão da pandemia — objeto da investigação parlamentar no Senado. Com a nota, virou protagonista da crise e se candidatou a convocações em comissões parlamentares, inclusive na CPI da Pandemia.
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Em resposta, na Câmara houve uma imediata adesão de deputados à emenda constitucional proibindo militares da ativa em cargos da administração pública “nos três níveis da Federação”. Ontem, foi protocolada (PEC nº 21) com 180 assinaturas, nove além do necessário.
Assiste-se a uma mobilização civil para defender as Forças Armadas como instituições de Estado, e não de governos, com bloqueio dos quartéis à política partidária.
É novidade, principalmente num Legislativo pródigo em iniciativas anódinas, como a instituição do dia do “amigo da infância”, mas que há três décadas evita decidir sobre os fundamentos do controle militar pelo poder civil.
Amanhã, por exemplo, completa-se um ano da chegada ao Congresso da terceira revisão da Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional.
São documentos relevantes sobre a definição do papel e dos objetivos das Forças Armadas, com detalhamento dos meios, ações e um inventário de efetivos, equipamentos e recursos.
Há 12 meses adormecem nas gavetas parlamentares, como uma espécie de símbolo do definhamento do controle civil sobre os militares e a condução política da defesa nacional.