Bolsonaro relatou um crime e ninguém se mexeu
Não se sabe se ele espera pela reação, ou se resolveu aguardar o fim do feriado para aparecer numa delegacia e registrar um Boletim de Ocorrência
Na sexta-feira, Jair Bolsonaro esteve em Campinas e disse o seguinte: “Temos um problema sério pela frente agora. Eu indiquei [André Mendonça, ex-ministro da Justiça] um excepcional jurista, que é evangélico também, para o Supremo. E tem corrente que não quer ele quer lá, quer impor. E chega recado: ‘A gente resolve CPI… a gente resolve tudo, me dê a vaga do STF’. Isso sempre houve, nós começamos a mudar.”
Foi uma cena rara [clique aqui para assistir, nos primeiros dois minutos do video]. Em tom suave, pausadamente, o presidente da República contou a uma plateia ter rejeitado proposta de alguém supostamente capaz de “resolver tudo” de interesse do governo no Congresso Nacional, inclusive na CPI do Senado, em troca de uma das 11 cadeiras no plenário do Supremo Tribunal Federal.
Notável, também, é o fato de que já se passaram três dias desde o relato em público e nada tenha acontecido, nenhuma providência tenha sido tomada, ou ao menos anunciada, pelo governo, Ministério Público Federal, Congresso e Supremo.
Em qualquer lugar, é fato relevante um presidente revelar ter sido submetido a uma tentativa de extorsão. No caso, o chefe do Executivo se apresentou em público como vítima de um crime aparentemente cometido no Legislativo e tendo o tribunal constitucional como objeto.
Pode-se argumentar sobre o agudo descrédito de Bolsonaro — seis de cada dez brasileiros não costumam confiar no que ele diz, segundo as pesquisas de opinião pública.
Tudo bem, mas isso não invalida o principal: no relato dele há notícia de um crime envolvendo os três Poderes. Também, não anula a natural expectativa de apuração e eventual punição do delito. Como dizia o jurista romano Cesare Beccaria (1738-1794), sempre reverenciado no Supremo, a forma mais eficaz de evitar o crime é a certeza do castigo.
Brasília é um mercadão de compra e venda de facilidades. Caso exemplar é o do camelódromo de vacinas contra a Covid-19 que operou no Ministério da Saúde durante o pandemônio governamental na pandemia, até ser descoberto pela CPI do Senado.
Pelos corredores da Saúde transitavam diretores de um banco, que não era banco mas afiançava contratos com o governo usando como garantia um terreno inexistente e registrado em cartório desconhecido. Sob patrocínio de alguns parlamentares, também desfilavam executivos de empresas de prateleira e até um “conferencista da Paz mundial”, entre outros personagens dessa tragicomédia surrealista.
Alguns conseguiram a reserva, ou “empenho”, de R$ 1,6 bilhão no orçamento federal para a compra de vacinas que não existiam — com pagamento adiantado de uma parte do contrato. A negociata foi impedida pela CPI.
Bolsonaro deveria expor em público o(s) nome(s) do(s) emissário(s) do recado que diz ter recebido: “A gente resolve CPI… a gente resolve tudo, me dê a vaga do STF.”
No discurso de Campinas contou a trama de um crime do qual foi vítima sem dar detalhes sobre a autoria. Ele pode estar à espera de alguma reação dos órgãos de controle do próprio governo, da polícia, do Ministério Público, ou mesmo das partes citadas — o Supremo, o Senado e a CPI.
Ou, talvez, tenha resolvido aguardar o fim do feriado prolongado para aparecer numa delegacia de polícia e fazer um B.O. (Boletim de Ocorrência).
Seria um toque de ácida ironia na paisagem verde-amarela de naturalização dos delitos de toda e qualquer coloração partidária.